Palmilha usa inteligência artificial para prever risco de queda em idosos
Pode reparar, ninguém para quieto pra valer. O corpo está sempre oscilando: ainda que milimetricamente, vai para um lado e para outro, vai para a frente e para atrás. E, se está se deslocando em uma caminhada ou subindo escadas, é a mesma coisa. Balança e...às vezes, cai.
Nos idosos, que ao longo do tempo podem ter somado mudanças posturais, fraqueza muscular, problemas ósseos e articulares e, para completar, alterações nervosas, o risco de quedas é mais elevado. Isso gera um tremendo problema de saúde pública — e, aí, não só pelas fraturas, que muitas vezes exigem cirurgias grandes e mais arriscadas nessa faixa etária, mas também pela perda de autonomia em que o acidente pode resultar.
Pensando em tudo isso, em 2019, cientistas da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba) questionaram: por que não criar uma palmilha inteligente para prever essa ameaça?
Talvez não exista lugar melhor no Brasil para esse projeto dar seus primeiros passos que o Nutes (Núcleo de Tecnologias Estratégicas em Saúde) da universidade paraibana. Campina Grande, onde ele fica, é uma cidade surpreendente pelo clima serrano em pleno Nordeste e por ser um baita polo tecnológico. Ali, o Nutes está instalado em um prédio com 2.500 metros quadrados repletos de laboratórios.
"Nosso núcleo foi fundado graças a uma encomenda que o Ministério da Saúde fez em 2008", relembra a matemática Kátia Galdino, uma de suas coordenadoras. "Era preciso um local capaz de realizar testes de ponta para a Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, avaliar softwares e equipamentos médicos, algo que não existia até então."
Hoje, o lugar é um ninho de projetos, como o dessa palmilha, que poderá ser usada para informar o próprio usuário se ele está prestes a cair, assim como alertar profissionais de saúde sobre as causas exatas de perdas de equilíbrio e tombos de seus pacientes, a fim de que possam indicar o melhor tratamento e acompanhá-lo posteriormente.
Os ensaios clínicos, que deverão começar ainda este ano, serão realizados pela MedSênior, plano de saúde que atende mais de 150 mil idosos, com idade média de 73 anos. "Nós ajudamos, como parceiros, na fase de desenvolvimento do protótipo. E agora vamos validar a eficiência da palmilha", conta o ortopedista Thiago Maia, líder do Laboratório de Inovação da operadora de origem capixaba.
Por que uma palmilha?
O fisioterapeuta Lauriston Paixão, professor da UEPB e pesquisador do Nutes, foi quem teve a sacada de criar a palmilha, batizada de SenseShoes, aliando um bocado de sensores e recursos de inteligência artificial para dar conta das dezenas informações que eles são capazes de captar a cada movimento.
"Eu sabia que seria possível prever quedas analisando a pressão em diversos pontos da planta dos pés. Estudos indicam que cerca de 80% do nosso equilíbrio postural têm relação com a forma como pisamos. Os pés influenciam fortemente a postura de todo o nosso corpo". Aliás, segundo ele, um outro motivo por que os idosos costumam sofrer mais quedas é a perda de sensibilidade na região plantar.
Na palmilha, porém, não falta "sensibilidade". Ora, são 16 sensores de pressão flexíveis em cada pé. "Ela também tem um sensor que mede a aceleração e um giroscópio de cada lado", conta Paixão. "O giroscópio aponta qualquer diferença de ângulo enquanto você se movimenta, ou seja, ele acusa os movimentos do tornozelo ", descreve o pesquisador.
Todos os dados, então, vão parar em um transmissor do tamanho de uma caixa de fósforo, acoplado no calçado fechado. De preferência, um par de tênis (como você pode ver na imagem acima). É que, por exemplo, um sapato feminino de bico mais fino apertaria todos os dedos e bagunçaria aquela análise da pressão durante a pisada.
Por bluetooth, o dispositivo manda a penca de informações para um software avançado, capaz de cruzá-las em um zás-trás. "Ele identifica o ponto de maior pressão e a distribuição dessa pressão cada região da planta. Também faz a comparação entre o pé direito e o esquerdo, mostrando se o indivíduo está pisando com mais força de um lado do que de outro, usando mais o calcanhar ou a parte anterior, próxima dos dedos", explica o professor. "O resultado da análise é enviado para um aplicativo de celular, que poderá emitir um sinal sonoro para a pessoa se cuidar quando estiver quase caindo."
O jeito como alguém caminha
Além de analisar a pressão plantar, o dispositivo consegue apontar como está a marcha: a velocidade, a cadência, que é a quantidade de passos por minuto, e o comprimento de cada passada, entre outros parâmetros.
"Isso pode dizer muito sobre o estado geral de saúde do idoso", nota Lauriston Paixão. "A velocidade com a qual ele caminha, por exemplo, não só conta para a gente ver o risco de queda, com é um fator preditivo de fragilidade."
Outro exemplo: o idoso que tem o comprimento do passo menor que a média. "Sabe aquele senhor que pode até acelerar um pouco, mas que sempre dá passinhos curtos, quase arrastando os pés?", indaga o pesquisador. "Pois bem, esse é um sinal importante de um desequilíbrio maior, a ponto de criar uma dificuldade para ele andar, algo que seu corpo tenta compensar não só encurtando a passada para dar uma sensação de segurança, mas aumentando a base, isto é, a distância entre os dois pés." Esta é mais uma informação fornecida pela palmilha inteligente.
Por fim, aquelas oscilações do corpo, que são normais, podem ficar acentuadas com a idade. "É mais um alerta. E é bom saber se a pessoa oscila mais de um lado do que de outro, mais para trás do que para frente, algo que o dispositivo consegue avaliar até mesmo enquanto ela se movimenta", diz o pesquisador.
Aliás, talvez esse seja o grande diferencial: a SenseShoes mostra o risco de quedas e outras informações na vida real, que pode ser diferente de quando o indivíduo está no consultório ou no laboratório. É possível pedir para o paciente usá-la na rua, enquanto se exercita no parque ou na sua casa, para saber em que situações ou em quais cômodos ele parece correr maior risco de cair.
Na fase de desenvolvimento, a palmilha foi produzida em apenas três numerações de calçado — 38, 39 e 40. E os testes foram feitos com os participantes dando apenas vinte passos — dez para frente, girando e retornando para a posição inicial com outros dez. "Mas, mesmo sendo um protótipo, a pessoa poderia usá-la por uma hora e meia, duas horas consecutivas, permitindo uma avaliação bastante extensa e completa", explica. "E, no futuro, será possível ampliar ainda mais esse tempo."
Para ser útil no dia a dia
Um desafio é produzir um relatório no aplicativo que o usuário consiga entender, até para tomar alguns cuidados, incluindo a busca de um profissional de saúde.
"Gostaríamos que ele notasse detalhes. Por exemplo, se consegue subir as escadas de casa, mas tem dificuldade com os degraus para entrar no ônibus", diz o professor. "Às vezes, essas diferenças aparecem até por traumas, se a pessoa já quase tomou uma queda ao pegar uma condução no passado." O cérebro, então, treme nas bases e essa insegurança, por ironia, pode causar mais problemas.
Em pés diabéticos
Lauriston Paixão acrescenta que outra possível aplicação para o dispositivo, embora não tenha sido o objetivo inicial do projeto, seria em pacientes com diabetes. "Pode haver uma perda de sensibilidade plantar, quando diagnosticamos pés diabéticos. Por causa dessa insensibilidade, os pacientes costumam usar força excessiva em um determinado ponto sem perceberam", afirma
O problema é que a pressão contínua e exagerada pode causar machucados, capazes de evoluir para úlceras e, infelizmente, para amputações. No caso, a palmilha alertaria para esse erro na pisada, dando a oportunidade para corrigi-la e, ainda, ficar de olho na região mais pressionada.
Próximos passos
O desejo de todos é ter a tal palmilha inteligente disponível depressa. Mas Thiago Maia, da MedSênior, lembra que, primeiro, os ensaios clínicos servirão de base para a aprovação da Anvisa. "Eles serão realizados com pacientes que frequentam o NAI (Núcleo de Autonomia e Independência), área que desenhou todo o protocolo de pesquisa para essa nova etapa. O NAI é uma oficina de tratamento para indivíduos que já apresentam algum nível de fragilidade".
Só depois, com tudo dando certo, é que a SenseShoes poderá chegar ao mercado. Um passo de cada vez.
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