Déficit de atenção é uma das causas de incontinência em crianças e jovens
Se eu contar que uma criança ou um adolescente com incontinência urinária geralmente apresenta problemas emocionais ou de comportamento, provavelmente você não achará novidade alguma no meu papo. Ora, fácil deduzir que um menino ou uma menina com medo de molhar a roupa viva com ansiedade. Mas não só com ela.
Estudos também associam esse quadro a uma maior prevalência de depressão, baixa autoestima, irritabilidade e TOD, o transtorno desafiador opositivo — quando o jovem fica sempre enfrentando de maneira agressiva quem o contraria, em uma espécie de birra turbinada e patológica. E, sim, não raro o garoto ou a garota que deixa o xixi escapar sofre de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade).
Aliás, os urologistas sabem que não é só a incontinência que é capaz de mexer com as emoções e com o comportamento. Pode acontecer a mesma coisa com a moçada que, do nada, precisa voar até o banheiro — sintoma que esses especialistas chamam de urgência miccional. Ou com aqueles que não chegam a encharcar a roupa, mas que têm pequenos escapes de urina ao longo do dia, umedecendo a cueca ou a calcinha. Ou, ainda, com aqueles que seguram a vontade de esvaziar a bexiga o tempo inteiro, o que tampouco é bom.
Mais recentemente, porém, os médicos passaram a entender que o caminho é de mão dupla, desenhando um triângulo que liga as disfunções do trato urinário inferior com a constipação (sim, a constipação!) e o cérebro. E que, da forma como esses problemas costumam levar a questões mentais e psíquicas, a recíproca pode ser verdadeira.
"Hoje, pesquisas com ressonância magnética funcional, que revelam o cérebro em ação, demonstram que o déficit de atenção provoca ou, no mínimo, agrava uma disfunção do trato urinário inferior ", exemplifica o urologista Ubirajara Barroso Júnior, que é professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), onde coordena a disciplina de Urologia.
No mesmo endereço cerebral
Em um estudo que o grupo do urologista baiano realizou com 806 crianças e adolescentes de 5 a 14 anos de idade, a probabilidade de haver questões emocionais ou de comportamento era 2,6 vezes maior em quem tinha alguma disfunção do trato urinário. Como ovo e galinha, esses problemas poderiam ter surgido até antes e só piorado depois.
Barroso Júnior não se espanta com essa relação. "Os sinais nervosos que a bexiga envia ao cérebro — informando, por exemplo, se ela está cheia ou não — vão parar na mesma área responsável pela tomada de decisões e pelo controle do comportamento, que seria o córtex pré-frontal, na altura da nossa testa. E esses sinais ainda alcançam regiões mais primitivas, como o giro do cíngulo, envolvidas no controle emocional." O caminho de volta dessas mensagens nervosas, claro, também existe.
Depois dos 5 anos
"Por que esse e outros trabalhos na mesma linha só avaliam participantes com 5 anos ou mais? ", indaga o professor, para já responder em seguida. "É que, a partir dessa idade, toda criança já deveria urinar como um adulto. Isto é, seu cérebro deveria ter plenas condições para interpretar quando a bexiga está cheia e tomar a decisão de ir ao banheiro para esvaziá-la, chegando lá com relativa calma, sem deixar escapar urina pelo caminho."
Qualquer coisa diferente disso entra na classificação de disfunção do trato urinário inferior e merece a avaliação de um urologista.
Atenção para urinar
O córtex pré-frontal, onde vão parar os sinais da bexiga, também tem a ver com a nossa capacidade de focar. "E, mais uma vez, tudo faz sentido", diz Ubirajara Barroso Júnior. "O indivíduo deve estar atento aos sinais do corpo para perceber o momento em que a bexiga já está cheia."
De fato, esse reservatório poderá se encher até um ponto em que provocará um reflexo, levando ao relaxamento da musculatura do assoalho pélvico e à sua própria contração. Daí, seu esfíncter se abrirá, escoando o líquido que estava lhe deixando apertada.
"Crianças e adolescentes com déficit de atenção muitas vezes não percebem a vontade de urinar antes de isso acontecer", nota o urologista. "Neles, há uma prevalência maior de um tipo incontinência urinária, aquele em que o menino ou a menina está entretido em alguma coisa e ignora a bexiga cada vez mais repleta de líquido. Então, há pequenas perdas, mas esse jovem nem reclama, porque não se dá conta." Pais e cuidadores é que, com muita frequência, reparam que roupa íntima vive úmida.
Quem consegue se segurar?
Estudos como o do professor costumam dividir os jovens participantes em dois grupos. Há os que são mais resilientes e que, diante de um estresse qualquer, não se deixam dominar intempestivamente pelas emoções. E há aqueles que, classificados como vulneráveis, diante do mesmo evento estressante se deixam levar pelo pânico e tomam decisões por impulso.
"Pois bem: quando a bexiga se enche e dá uma vontade um pouco mais forte de urinar, o indivíduo resiliente a segura e pensa em ir ao banheiro", ilustra o médico. "Já a criança mais vulnerável entra em um processo de dizer para si mesma 'eu não vou conseguir' ou 'preciso sair correndo ou farei xixi agora mesmo'. Essa ansiedade é que faz com que ela, muitas vezes, não consiga prender a urina", observa.
Prender o xixi aumenta o risco de constipação
Urinar envolve, ainda, uma óbvia tomada de decisão — a de ir ao banheiro. "Quem faz outra escolha, a de viver prendendo a urina — como vemos frequentemente em jovens no espectro autista, por exemplo — acaba cometendo um equívoco", comenta Barroso Júnior.
Prender o xixi favorece infecções urinárias, porque algumas bactérias se aproveitam das "águas paradas" para, então, se multiplicarem. Mas não é só isso.
Ora, o reto, que é a porção final do intestino, tem a mesmíssima origem da bexiga no embrião. E, pela vida afora, eles irão compartilhar caminhos nervosos que subirão pela medula até alcançarem ao cérebro e que, no sentido oposto, enviarão as ordens do sistema nervoso central até eles. Daí que, sim, segurar o xixi também induz a constipação intestinal.
"Em 7% das crianças, os dois problemas coexistem.", calcula Barroso Júnior. "É uma parcela relativamente grande da população infantil." E, entre a meninada que tem disfunção do trato urinário e constipação ao mesmo tempo, metade apresenta problemas emocionais significativos ou alterações de comportamento.
"É mais comum, porém, os pais notarem problemas que tenham a ver com o urinar do que a prisão de ventre", repara o médico. "O caso é bem grave quando a criança defeca três ou menos vezes por semana, claro. Mas também consideramos constipação quando a criança sente dor ou sempre faz força na hora de evacuar."
A constipação em crianças merece tratamento sem perda de tempo. Até porque, em um caminho de vai-e-volta, ela também é capaz de gerar disfunções do trato urinário.
Na esfera emocional, segurar "número 1" ou "número 2" pode estar associado a uma criança sensível ao estresse. Para o cérebro, na hora lutar ou fugir de feras imaginárias, não dá para pedir uma paradinha para ir ao banheiro.
No que reparar
Depois do desfralde, os adultos podem (e deveriam) notar quando a criança está fazendo o que os médicos chamam de manobra de contenção. "Ela cruza as perninhas, aperta os genitais, fica na ponta dos pés", descreve o professor. "Isso ajuda a inibir a função da bexiga para continuar brincando ou fazendo outra coisa qualquer."
O melhor, então, é perguntar se ela não está com vontade de ir ao banheiro, ensinando-a a prestar atenção nisso, e levá-la até lá — nem que sob alguns protestos, pois às vezes há coisas que parecem mais interessantes neste mundo do que uma privada.
"Também é importante estimular a hidratação", orienta o urologista. "Isso faz a bexiga ter ciclos de se encher e se esvaziar mais rápidos. Funciona como um treino."
E, claro, é fundamental observar se ela está urinando, no mínimo, de três em três horas durante o dia. De manhã, se a criança maior de 5 anos acorda e não vai ao banheiro — isto é, se já não esvaziou a bexiga no colchão, enquanto dormia —, os pais devem lembrá-la. "Tudo isso ajuda a criar um hábito. O sistema nervoso poderá aprender."
Olhar para a cabeça
Essas medidas não dispensam a ida ao urologista pediátrico, que tem um arsenal para ajudar — de indicação de fisioterapia a remédios, passando por tratamentos de eletroestimulação.
"No entanto, trabalhos como o nosso apontam que, sem uma abordagem mais holística, isso tudo não irá resolver", pensa o professor. Ou seja, se a saúde mental e emocional da criança não estiver bem cuidada, a bexiga e o intestino continuarão se ressentindo. E, se duvidar, criarão ainda mais problemas à cabeça.
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