Lúcia Helena

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Reportagem

Dá para flagrar o câncer de intestino com um exame de fezes de farmácia?

Daqui a pouco, em uma ida à farmácia, passando pelas mesmas prateleiras onde ficam probióticos e fibras para melhorar o funcionamento do intestino, você talvez encontre um exame de fezes prometendo rastrear o câncer colorretal. A startup brasileira Ubuntu Med anuncia que, se tudo der certo, a novidade chegará ao mercado nas próximas semanas.

Não, não se trata de um teste rápido, desses que dão a resposta quase na mesma hora. A amostrinha — praticamente um palito sujo de cocô até a metade e mais nada — ainda terá de ser enviada a um laboratório ou retirada na sua casa. Mesmo assim, um exame desses poderá ajudar bastante.

Lembre-se que o tumor de intestino é o segundo tipo de câncer mais frequente nos homens e nas mulheres do país, se a gente desconsiderar o de pele não melanoma. Mas a questão não é apenas o número elevado de casos — segundo o Inca (Instituto Nacional de Câncer), entre 2023 e 2025, a estimativa é de 45 mil novos registros por ano.

O cenário atual é que é a maior meleca. Pense: nove em cada dez casos de tumores malignos no cólon ou no reto poderiam ser curados com relativa facilidade se fossem descobertos precocemente. Mas não é isso o que vem acontecendo. No Brasil, 75% dos pacientes só recebem o diagnóstico quando a doença já está avançada, jogando pela descarga a chance de tratá-la cedo.

Não estou fazendo trocadilho barato. Tal chance muitas vezes está no cocô.

Atrás de sangue oculto

"Se o intestino está com alguma doença, seja ela benigna ou maligna, surgem pontos de inflamação em suas paredes. Então as fezes, quando passam por ali, costumam arrastar sangue", descreve a médica mineira Paula Távora. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial, ela é a líder da Ubuntu Med desde o início deste ano.

O sangue desprendido por um câncer, porém, não é vermelho vivo, feito aquele derramado por hemorróidas, que seria fácil de você notar se resolvesse observar o que deixou na privada. Nesse caso, são pequenos coágulos que, no meio do cocô, terminam camuflados, tom sobre tom. Não à toa, os médicos usam a expressão "sangue oculto".

Exame de fezes ou colonoscopia?

"A colonoscopia, que é um exame de imagem, segue sendo o padrão ouro para diagnosticar o câncer colorretal", admite a patologista. "Mas ela exige um preparo complicado, incluindo lavagem intestinal, sem contar a sedação na hora do procedimento, o fato de ser mais cara — principalmente, se pensamos em saúde pública —, e de não ser oferecida em todas as cidades, às vezes exigindo viagens para fazê-la. Portanto, o ideal seria a gente encaminhar para a colonoscopia apenas aquelas pessoas com sangue oculto nas fezes", opina.

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Porém, descobrir quem são elas não é tão simples quanto a ideia de fazer cocô em um potinho faz parecer. E é nesse ponto que a tecnologia desenvolvida no Japão e trazida pela startup brasileira é realmente inovadora. Pode facilitar muito as coisas.

Entenda o pulo do gato

O nome da tecnologia é FIT látex quantitativo. "Antes dela, para começo de conversa, eu sempre precisava de um cocô fresquinho", brinca a médica. E brinca a sério.

De fato, nos testes de sangue oculto nas fezes existentes até então, a coleta precisa ser entregue no ato, ainda guardando aquele calor humano, sabe como é? Ou, no máximo, em seis horas, se for mantida refrigerada em uma temperatura de 2 a 8 ºC. "Passado esse tempo, o exame não tem condições de ser bem executado e já não dá para confiar tanto no resultado", justifica a patologista

Essa é exatamente a primeira vantagem do novo exame: a haste suja de fezes é mergulhada em um líquido estabilizante que impede a hemoglobina de se quebrar. "Com isso, ela se mantém por quinze dias em temperatura ambiente. Pode ser enviada pelo correio para um laboratório, o que é capaz fazer total diferença em um país com a dimensão do nosso", diz a doutora Paula. Ah, sim, refrigerada, a amostra aguentaria bem mais. No caso, um mês.

O tamanho do risco

Outro ponto positivo o próprio nome já entrega: trata-se de um exame quantitativo. "O laudo diz quantos microgramas de sangue há na amostra", conta a médica. "Sabemos por estudos que, se há menos de 100, o risco de indicar um câncer é baixo. Provavelmente é outra doença qualquer. A preocupação surge quando o resultado é superior a isso. O risco torna-se intermediário se o exame encontra 150 microgramas de sangue. Passa a ser alto se o valor é maior que 200. Acima de 300, é quase certo que estamos diante de um tumor maligno."

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É aí que entra o látex na história. De acordo com a doutora, seu papel é ser um revelador, usando o jargão da área. Explico. O teste em questão é imunoquímico, isto é, usa um anticorpo que se liga à hemoglobina do sangue se, por acaso, ela estiver perdida no meio das fezes. "É uma ligação de chave e fechadura", compara a doutora Paula. "Só que é impossível enxergar essa reação. Daí, o que o látex faz é aglutinar essas ligações. Com isso, elas se tornam perceptíveis." E quantificáveis também.

Os outros métodos

Nos anos 1960, os cientistas descobriram que uma substância chamada guáiaco era capaz de dedurar a presença da hemoglobina que dá ao sangue a sua cor. Mas esse exame, usado até hoje na rede pública, tem suas limitações. "O maior problema é que ele não é específico para a hemoglobina humana", explica a doutora Paula. Isso quer dizer que pode dar resultado positivo se você comeu um saco de balas cheias de corante ou uma salada de beterraba. O guáiaco gosta de sair acusando um pigmento.

Por essa razão, a pessoa precisa ficar três dias, às vésperas do exame, sem comer nada colorido. E, bem pior, ela deve fazer três coletas em dias diferentes, por segurança. Ou seja, há a necessidade de ir três vezes até o laboratório para levar o potinho que encheu em casa ou enchê-lo por lá. Nessas circunstâncias, fazer cocô é uma tarefa difícil.

"Ficamos décadas sem qualquer alternativa ao exame com o guáiaco", relembra a médica. "Na virada do milênio, porém, surgiu o FIT, o tal teste imunoquímico. Mas a primeira geração era a do FIT qualitativo". Apesar de ser específico e, portanto, não exigir aquela dieta desbotada, nem três visitas ao laboratório, esse exame não quantifica a hemoglobina. "Só diz se ela está ou não está presente", explica a doutora.

De uns tempos para cá, na rede particular, o exame é feito com um equipamento que dá uma noção de quantidade — se tem muito ou se tem pouco sangue. Mas sem a precisão do FIT látex.

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Como é feito o novo teste

No kit, vem uma espécie de forro para a pessoa colocar no vaso sanitário ou até mesmo no bidê. O cocô cai ali, ficando mais fácil, ao abrir o flaconete, dar algumas cutucadinhas nele com a haste da tampa. Então é só fechar — a haste sujinha já ficará mergulhada no estabilizante.

"O interessante é que ninguém irá abrir essa amostra. O flaconete tem um invólucro metálico que será perfurado pelo equipamento que fará a análise", conta a patologista. Aliás, junto com as instruções sobre como fazer tudo certinho, vem um QR Code para a pessoa saber qual o melhor laboratório para enviar ou pedir para retirar sua amostra. Para a médica, o exame tem tudo para se tornar uma valiosa ferramenta de rastreamento. Seu custo, ela estima, não passará de 150 reais.

Um desafio é colocar na cabeça das pessoas que o exame de fezes é realmente importante. Ainda mais sabendo o câncer de intestino tem aparecido em gente cada vez mais jovem, enquanto a colonoscopia só costuma ser solicitada a partir dos 45 anos. Faz sentido deixá-la para mais tarde. Mas não custa tanto olhar para o cocô antes disso.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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