Coral que é praga no nosso litoral pode virar remédio para doença de Chagas
"Há um coral, aí, que invadiu o nosso litoral. Parece ter uma toxina potente, porque está matando todos os outros corais", comentou, sem esconder a preocupação, o biólogo Alvaro Migotto, do Centro de Biologia Marinha da USP (Universidade de São Paulo), que fica em São Sebastião, no litoral norte do estado.
A conversa, ocorrida há uns seis anos, era com o farmacêutico André Tempone, que vira e volta ainda mergulha por lá para coletar espécies marinhas. Hoje, ele conduz suas pesquisas no Instituto Butantan, na capital paulista.
O interesse de Tempone pelas espécies marinhas é antigo. Na adolescência, seu sonho era estudar oceanografia. Por isso, na época de prestar vestibular foi assistir à palestra de uma professora desse curso na USP. Na ocasião, ela contou à jovem plateia que os oceanos guardariam uma farmácia inteira, o que deixou o rapaz impressionado a ponto de decidir virar farmacêutico. Há pelo menos duas décadas, ele busca novíssimas moléculas para tratar doenças neglicenciadas na nossa natureza — inclusive, a subaquática.
Para alguém assim, a palavra "toxina", que o colega cientista soltou no ar naquele dia, é capaz de deixar a cabeça em alvoroço. Afinal, ele vê se repetir, no laboratório, a velha história de que aquilo que envenena pode curar e vice-versa. Tudo pode ser uma questão de dose — ou de alvo.
"Toxina?!", lembra de ter repetido no mesmo instante. "Isso me interessa demais. Onde posso encontrar esse coral?". Migotto, então, respondeu: "Infelizmente, não vai ser nem um pouco difícil. Você irá encontrá-lo mergulhando em qualquer canto por aqui. E esse é o grande problema: ele é uma praga que está danificando toda a nossa biodiversidade marinha."
Sem hesitar, Tempone pegou uma lancha com o técnico do centro, mergulhou e emergiu com 2 quilos de coral-sol (gênero Tubastraea), que levaria para investigar. E foi nesse animal — sim, corais são animais marinhos primitivos — que acabou encontrando um composto que, feito um ninja, entra discretamente na célula que está hospedando o Trypanossoma cruzi, causador da doença de Chagas, para matar esse protozoário e sair em seguida, sem fazer o menor alarde. Leia, deixando a célula hospedeira intacta, como se nunca tivesse acontecido nada de estranho em seu interior.
Beleza fora de lugar
Apenas durante poucas horas a cada dia, o coral que produz essa substância fica parecido com um girassol cheio de pétalas, como você pode ver na imagem desta coluna. É quando sai do interior do seu esqueleto alaranjado, onde permanece escondido e protegido. A escapadela é para filtrar a água e captar, assim, seu alimento. Depois se resguarda outra vez.
No Oceano Pacífico, onde o coral-sol sempre viveu, ele encontra predadores, de maneira que sua população não consegue crescer além da conta. Mas, chegando no Atlântico, provavelmente como um clandestino nas plataformas de petróleo — ao menos, a suspeita é ele que tenha viajado assim até o nosso litoral nos anos 1980 —, a história fica bem diferente. Na costa brasileira, o coral-sol não tem concorrentes. Vem acuando e tirando as chances de sobrevivência de outras espécies.
"Os corais nativos, que não o conheciam, ficaram à sua mercê", observa Tempone. "Não à toa, os mergulhadores tentam retirá-lo sempre que podem, porque de fato é uma verdadeira praga nos nossos mares, apesar dessa beleza toda."
Beleza tão enganadora quanto, sob certo ponto de vista, a do ambiente marinho, com suas esponjas, crustáceos, peixes e, claro, corais multicoloridos, movimentando-se em um bailado. "Tudo é tão lindo que a gente não percebe, mas, ali, está acontecendo uma guerra química", lembra Tempone. "As espécies competem entre si por espaço e alimento. E, para isso, desenvolvem compostos umas contra as outras, que precisam ser extremamente potentes, já que serão dissolvidos na água."
Em uma única célula do coral-sol, o farmacêutico e seus colegas de pesquisa encontraram 200 desses compostos.
A molécula ninja
"Primeiro, a partir dos animais coletados, conseguimos obter um extrato, uma espécie de sopa do coral-sol", conta o farmacêutico do Butantan. "Então, fracionamos esse extrato quimicamente, ou seja, separamos todos os seus compostos e testamos um um por um com toda a paciência, até que encontramos um deles que tinha atividade contra o protozoário por trás da doença de Chagas."
Tudo bem, aquele composto até matava o Trypanossoma cruzi, bagunçando o seu metabolismo energético a ponto de tornar sua existência impossível. "Mas o que ele seria exatamente? Essa parte do trabalho já não era com a gente", diz Tampone.
O composto com vocação para ninja, então, foi parar no laboratório do químico João Lago, professor da Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo, que tratou de descrevê-lo minuciosamente.
Mas não bastava saber que se tratava de uma substância da família química dos alcaloides, ter sua molécula desenhada daquele jeito que a gente vê nos livros de Química e observar como agia. André Tempone explica: "Algo que isolamos na natureza nunca é um fármaco pronto, que vai direto para as prateleiras das farmácias. É preciso muito suor humano para que uma molécula encontrada em um animal, como o coral, ou em uma planta vire medicamento pra valer. Ela sempre precisa ser melhorada."
Cópias aprimoradas
No caso, essa espécie de aprimoramento está sendo conduzida na Universidade de Oxford, na Inglaterra. A parceria de trabalho entre André Tempone e o químico britânico Edward Anderson, que é de lá, começou ainda em 2014, com outra molécula capaz de agir contra o Trypanossoma cruzi, que o farmacêutico tinha isolado na canela-amarela — o nome científico dessa planta brasileiríssima é Nectrandra barbellata. "Anderson é um expert em copiar moléculas da natureza", elogia o farmacêutico, que resolveu investigar essa espécie por ela já ser conhecida popularmente por combater outras parasitoses.
No entanto, se a cópia da molécula da canela-amarela fosse fiel, um problema se repetiria: sua dose sempre despencava pela metade depois de três minutos circulando no organismo de camundongos infectados com o protozoário da doença de Chagas. "Meu colega de Oxford, porém, conseguiu fazer com que ela passasse a agir por 21 horas, driblando esse obstáculo inicial", conta Tempone.
Em relação ao composto do coral-sol, quando ele for sinterizado na Inglaterra — eliminando a necessidade de extraí-lo diretamente da espécie marinha —, no que ele poderia ou até deveria melhorar? Foi a pergunta que fiz. O pesquisador do Butantan, então, me contou o que todos desejam: "Torcemos para adquirir maior potência, para que possamos dar quantidades menores e, ainda assim, ele matar o parasita".
Quando isso acontecer, o protótipo — assim como a molécula da canela-amarela — será testado, primeiro, em animais para tratar um mal que, até hoje, não tem remédio.
Mais comum do que se imagina
Esqueça aquela ideia do inseto barbeiro, vetor que transmite o protozoário, rondando casas de pau a pique, taipa, sapê. Embora esses ambientes facilitem seu aparecimento, a doença que leva o nome de quem a descreveu em 1909, o médico sanitarista Carlos Chagas, não é mais a mesma . Em tempos de devastação da natureza, ela soma centenas de milhares de casos nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e na Oceania, inclusive em metrópoles. Pelo mundo, são de 16 a 18 milhões de infectados.
O que continua igual: os problemas que a doença de Chagas provoca, se evolui na maior surdina. Ora, o único tratamento que a humanidade tem disponível só funcionaria bem no início, quando poucos pacientes sabem que estão infectados, até porque muitos casos são assintomáticos. Aliás, André Tempone estudava outra doença, a leishmaniose, quando ouviu de um professor, no período que passou na London School of Hygiene and Tropical Medicine, na Inglaterra, que a doença de Chagas era intratável. Desde então, procura algo que a remedie.
Isso porque, passados uns 20 ou 30 anos, a inflamação crônica provocada pelo Trypanossa cruzi, entre outras consequências, deixa músculo cardíaco flácido e dilatado, sem a menor condição de fazer direito o seu trabalho de bombear o sangue. É o que acontece com 30% dos pacientes. Podem surgir inclusive coágulos que, se viajarem até o cérebro, causarão um AVC.
A esperança vem do mar
Há um longo caminho até uma molécula como a do coral-sol virar remédio. Aliás, atualmente há pelo menos 40 fármacos oriundos de produtos marinhos sendo testados em fase clínica contra diversas doenças.
Está aí mais uma razão para cuidarmos dos oceanos. A ironia é que, no caso da promessa contra a doença de Chagas, foi um desequilíbro no ambiente marinho que chamou a atenção para o coral-sol.
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