Diarreias com sangue são sinal de inflamação que arrasa intestino de jovens
No meio das fezes moles, dá para ver o sangue na privada. Ou um muco feito catarro. Talvez os dois. Admito: este não é o jeito mais agradável de começar um texto. Mas só o desconforto provocado por essa cena já explica, em boa parte, por que ninguém sai falando disso por aí.
Lembre-se que, para piorar o constrangimento, na maioria das vezes o problema acontece com um garoto ou com uma garota em plena fase de auto-afirmação da adolescência. Ou, vá lá, ocorre em um adulto com menos de 30 anos, que pode estar na faculdade ou dando os primeiros passos na carreira. E esse, devidamente, não é o melhor assunto para se enturmar.
A partir de certo ponto, disfarçar o mal-estar vira um esforço gigantesco. A pessoa frequentemente tem a sensação de que, lá embaixo, há um cocô querendo sair. Na aula, pede várias vezes para ir ao banheiro. Mal pisa em um lugar desconhecido, a primeira coisa que faz é descobrir onde se localiza o WC para conseguir ficar por perto.
Agora, responda: além do estresse psicológico, quem não sentiria fadiga física se vivesse com dor de barriga, sem absorver nutrientes direito e correndo o risco de, por causa dos sangramentos, estar com uma anemia? "O impacto dessa condição é, de fato, terrível: 65% dos pacientes dizem que ela é quem manda em sua vida", conta o cirurgião do aparelho digestivo e coloproctologista Rogério Saad, professor titular da Faculdade de Medicina da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em Botucatu.
Ele está falando de retocolite ulcerativa, uma doença inflamatória do intestino incurável que, se não é bem controlada, tira o foco dos estudos ou do trabalho, prejudica a vida social e rouba até mesmo as noites de sono. Afinal, ninguém dorme direito se está com uma crise de diarreia.
Quando procurar um especialista
Às vezes, a retocolite até deixa o corpo febril. "Quando a crise parece forte, a pessoa tende a correr para o pronto-socorro. Só que, chegando lá, é capaz de ouvir que comeu algo que lhe fez mal ou que está com uma virose qualquer", nota o professor.
Ele aproveita para dar, de cara, o recado: "Se, ao evacuar, você vê sangue ou muco e se percebe que, há mais de quatro semanas, está com uma diarreia crônica — que vai embora e, depois de um curto período de sossego, volta —, o seu caso precisa ser investigado. O certo é marcar consulta com um clínico geral ou com um coloproctologista ou, ainda, com um gastroenterologista", orienta.
Até porque, se a retocolite avança demais, aumenta a probabilidade de complicações, capazes de criar a necessidade de uma cirurgia para ressecar a porção inflamada do cólon ou do reto. Sem contar que, em tese, quanto mais longo o período sem qualquer tratamento efetivo, maior o risco de o indivíduo, adiante, ser surpreendido por outro diagnóstico desagradável: o de um câncer de intestino.
A diferença entre doença de Crohn e retocolite
Durante quase a metade de seus mais de 25 anos de carreira, Rogério Saad se dedicou a operar tumores intestinais e problemas como hemorróidas. Até que uma colega, professora da Gastroenterologia, fez o convite para que participasse de um grupo que discutia as doenças inflamatórias. E elas viraram sua paixão.
"Quando a gente fala em doença inflamatória do intestino, há somente duas", esclarece. "A doença de Crohn e a retocolite ulcerativa." O intestino, claro, pode ficar inflamado por outros motivos — quando você pega uma infecção, por exemplo. Mas, aí, os médicos não usam esse termo.
A doença de Crohn provoca estragos da boca até o ânus. E, chegando no intestino, a inflamação que ela desencadeia é literalmente profunda, porque não perdoa nenhuma de suas cinco camadas. Costuma afetar o íleo, que é a parte final do intestino delgado. Então, há uma extensão de mucosa sadia para, daí, a inflamação reaparecer em um trecho do cólon e ao redor do ânus.
"Já retocolite se limita ao intestino grosso. Ela geralmente começa no reto e, com o tempo, vai subindo até o cólon. Avança sempre de baixo para cima ", define o doutor. "E a inflamação, no caso, só atinge duas camadas da parede intestinal, a mucosa que reveste o interior do órgão, e a submucosa, logo abaixo dela, que é bem irrigada de sangue." Sangue que começa a escapar.
O que aumenta o risco
Não existe uma causa única levando o intestino de um jovem a ficar cronicamente inflamado. O que há é uma combinação de fatores.
"Os componentes dos alimentos ultraprocessados são capazes de agredir a mucosa intestinal e ainda alteram a microbiota, isto é, mexem com o equilíbrio dos micro-organismos que vivem nesse órgão", exemplifica o professor. "No entanto, há indivíduos que se empanturram de salgadinhos de pacote e nem por isso desenvolvem uma retocolite ulcerativa."
Sinal de que há mais coisas aí. A ciência aponta o dedo para o tabagismo, que parece ter um papel importante nessa história. A qualidade da água, bem como os micróbios e as substâncias químicas a que alguém se expõe longo da vida possivelmente fazem diferença. "Conta, ainda, a quantidade de remédios consumidos, principalmente os antibióticos usados na infância", acrescenta Rogério Saad.
Os estudos sugerem que até mesmo a poluição do ar possa dar um empurrãozinho. "Mas talvez essa associação só apareça porque nas grandes cidades, que são mais poluídas, a rotina costuma ser mais agitada, com as pessoas comendo depressa e consumindo alimentos de pior qualidade", pondera o médico. Para completar existem as características genéticas e a resposta imunológica de cada um.
Como é o diagnóstico
O principal exame é a colonoscopia, aquele em que um tubo fino e flexível, com uma câmera na extremidade, viaja do ânus até o final do intestino delgado, a porção chamada íleo.
Mas, claro, os médicos não saem fazendo essa prescrição para qualquer pessoa que está com uma diarreia. "Ela é válida para quem tem episódios recorrentes, especialmente com sangue", diz o professor Saad. "E para quem apresenta sinais de alarme, como perda de peso."
Também podem ser solicitados exames laboratoriais. E, de uns cinco anos para cá, os especialistas reconheceram que o ultrassom ajuda. Por ser um exame não invasivo, ele é feito no próprio consultório e a imagem, no caso, ajuda a avaliar a intensidade e a extensão do processo inflamatório.
Para melhorar a resposta ao tratamento
Para conter a fúria do sistema imunológico contra a parede do reto e do cólon, há uma nova geração de medicamentos. Eles barram moléculas específicas — como a TNF alfa e as interleucinas 12 e 23 —, as quais ativam os linfócitos T de defesa, desencadeando todo o quiproquó.
"Cada uma dessas moléculas é como se fosse uma via diferente levando à inflamação. O problema é que a gente ainda não tem um teste que mostre qual delas é a mais importante para determinado indivíduo e, portanto, qual medicamento seria o melhor no seu caso", explica o doutor.
Na prática, isso faz com que apenas um terço dos pacientes respondam ao tratamento. "Se ele é equivocado, há recidivas, hospitalizações e, em alguns casos, a necessidade de operar para tirar uma porção do intestino", diz ele.
A nova esperança é uma pequena molécula chamada upadacitinibe. Aprovada no Brasil, ela infelizmente ainda não está disponível no SUS. O que faz é inibir outra molécula, a chamada JAK, presente na membrana do linfócito T. Ao seu encaixar ali, não permite sua entrada em cena. Desse modo, o linfócito não pode ser ativado, o que significa um cessar-fogo.
Em oito semanas, 81,8% dos pacientes tiveram resposta clínica ao medicamento — que, detalhe, é um comprimido. Aliás, houve um alívio dos sintomas da retocolite ulcerativa após duas semanas de medicação.
Um ano depois, a resposta caiu, mas ainda assim continuou relativamente alta: o upadacitinibe seguiu fazendo um bom efeito. Em 54% dos indivíduos que nunca tinham usado um outro remédio para a doença houve remissão do quadro. O mesmo aconteceu em 49% dos que já tinha experimentado algum tratamento antes. Ah, sim, há sempre uma diferença quando já é a segunda ou terceira tentativa.
O que mais se espera de qualquer tratamento, segundo o professor Rogério Saad, é que a mucosa intestinal se mantenha bem cicatrizada. Pois é o processo de eterna reparação, crise após crise, que dá chance para o azar e favorece o aparecimento de uma célula maligna.
Com novas opções de medicamentos, aliás, criando a possibilidade de o médico trocar aquela que não está apresentando o resultado desejado, a possibilidade de isso acontecer deve diminuir.
O desafio, porém, é a conscientização. Muitas pessoas, médicos incluídos, normalizam essas diarreias nos jovens. E um enorme número de moças e rapazes demora a se queixar por vergonha — o que só provoca mais dor, mais riscos, mais perda de tempo. Isso, sim, não cheira bem.
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