Lúcia Helena

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Reportagem

Câncer: por que 'cozinhar' metástase no fígado pode ser melhor que operar

Por uma pequena punção, a agulha foi introduzida no abdômen. Certeira, graças às imagens de ultrassonografia, tomografia e ressonância, ela não titubeou na direção de um ninho de células malignas, oriundas do intestino, mas que acabaram estacionando no fígado e crescendo por ali mesmo.

Só que a agulha em questão não era uma qualquer: ela tinha um eletrodo, era elétrica. E, ao alcançar o seu alvo, entregou uma energia, capaz de destruir aquele tumor. Como se o cozinhasse. Fez uma ablação térmica, tal qual dizem os médicos.

Isso foi realizado em aproximadamente metade dos participantes de um estudo, o COLLISION, que deu no que falar no último encontro anual da ASCO (American Society for Clinical Oncology), ocorrido no início deste mês em Chicago. Estados Unidos.

"A importância desse trabalho reside muito no fato de que os indivíduos apresentavam metástases de um tumor colorretal", comenta o médico Rodrigo Gobbo Garcia, que coordena a área de radiologia intervencionista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Faz sentido. No fígado, esse é o tipo de metástase que ele e seus colegas de Medicina mais vêem. Fácil entender por quê.

O câncer colorretal é o terceiro tumor maligno mais comum nos Estados Unidos. No Brasil, conforme dados do Inca (o Instituto Nacional de Câncer), ele é o segundo mais frequente em mulheres e o terceiro colocado, entre os homens. Esses números grandiosos, por sua vez, se refletem no fígado.

"A maldade do câncer colorretal é que mais de metade dos pacientes terão metástase nesse órgão", nota o doutor Gobbo. "O fígado, afinal, é uma peneira que filtra o sangue que vem do intestino", ele explica. "É natural entender, então, que as células tumorais que passem para a corrente sanguínea terminem parando ali."

Ou seja, acaba que o território hepático é o lugar mais certo de as metástases colorretais acontecerem. "Sabemos que, se conseguirmos livrar o paciente dessas metástases, ele viverá muito mais. Em geral, quem tem câncer colorretal morre por causa dessas lesões no fígado e não em decorrência do intestino doente", acrescenta Gobbo.

O problema é que extirpá-las nunca é tão simples: apenas de 20% a 30% dos casos são passíveis de uma cirurgia hepática para resolver a situação. E esse é um dos motivos por que a Medicina espera há uns 25 anos — praticamente o mesmo tempo em que surgiram as primeiras ablações, nos Estados Unidos e na Itália — descobrir se os resultados dos tratamentos da radiologia intervencionista, queimando ou até mesmo congelando metástases para fazê-las sumir, não seriam iguais ou até superiores aos da velha cirurgia.

"Na prática, já fazíamos ablações nos pacientes com metástases colorretais", esclarece Gobbo. "Mas para isso, até então, nós nos baseávamos em estudos pequenos, de baixo poder científico", reconhece o radiologista intervencionista. O COLLISION, porém, é um trabalho robusto. Daí o auê em torno do que ele mostrou.

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Para comparar direito

Logo, eis a questão: será que os tratamentos ablativos, que tentam destruir tumores sem uma cirurgia de grande porte como é a de fígado, poderiam dar bons resultados? De um lado, um procedimento de radiologia intervencionista realizado há pouco mais de duas décadas e que, portanto, ainda engatinha na longa história da Medicina. De outro, uma operação feita desde o século XIX.

Para fazer uma comparação, pesquisadores holandeses, ao lado de colegas belgas e italianos, juntaram um grupo de 299 pacientes de 14 centros de oncologia de seus países, todos os indivíduos com metástases de câncer colorretal no fígado.

Algumas exigências: nos participantes, o tumor surgido no intestino não poderia já ter se espalhado por outros órgãos. Só podia estar no fígado. Nem os pacientes poderiam ter feito quimioterapia antes, como é relativamente comum na preparação para uma cirurgia, quando os médicos querem que parte das metástases suma ou diminua antes da operação para facilitar as coisas.

O COLLISION, afinal, seria o que, em ciência, é chamado de estudo controlado, afastando tudo aquilo que, amanhã ou depois, pudesse dar brecha para alguém chegar e dizer que determinado paciente ficou melhor ou pior por essa ou por aquela outra razão. No caso, pelo fato de a doença ter se espalhado mais ou por ter feito a químio.

Além de controlado, o estudo também foi randomizado. Ou seja, os participantes foram sorteados, sendo que 147 caíram na turma submetida à ablação térmica, enquanto 148 tirou a sorte de encarar o bisturi a céu aberto, isto é, com um baita corte. Não seria feita uma cirurgia robótica, nem uma laparoscopia, uma vez que a maior parte dos serviços de saúde do mundo não possuem essas tecnologias. Ora, a ideia seria imitar a realidade.

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Mas — atenção para o detalhe —, justamente por causa disso, o tal sorteio, ou randomização, foi feito só na hora agá, com o paciente deitado no centro cirúrgico. "Assim, ele não poderia desistir se caísse no grupo da operação", conta Gobbo.

Como deveriam ser as metástases

Não é raro um paciente com uma condição dessas já chegar no consultório com quinze ou vinte metástases de câncer colorretal no fígado, conforme me contou Rodrigo Gobbo. "Mas, no estudo, optou-se por um cenário que seria confortável para todo mundo, tanto para operar quanto para queimar", ele explica. "Essa é a razão por que os participantes poderiam apresentar, no máximo, dez focos de metástase no fígado", diz ele. "Ou nada feito."

Outra: esses tumores deveriam ter 3 centímetros, não mais do que isso. O médico intervencionista do Einstein justifica: "Com base nos trabalhos que já existem sobre ablação, o 'três' virou um número mágico. Sabemos que, com a tecnologia disponível neste momento, conseguiremos ótimos resultados se o tumor tiver até esse tamanho".

Ablação versus cirurgia

No trabalho liderado pelos holandeses, a mortalidade entre aqueles pacientes operados foi de 2,1%. Ou seja, três sujeitos infelizmente morreram. Na ablação? Nenhuma morte aconteceu entre os que passaram por esse procedimento.

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O tempo de hospitalização também foi muito menor entre aqueles que trocaram o corte do bisturi pela agulha capaz de tostar a lesão maligna. Depois de um dia, os pacientes já podiam voltar para casa, enquanto os operados permaneceram no hospital por quatro dias, em média.

"O tempo de internação é mais ou menos esse quando a cirurgia é realizada pelas melhores mãos, nos melhores centros do mundo", informa Gobbo. Cá entre nós, sem essas condições de excelência, o período internado pode até aumentar um pouco, sendo que o paciente sempre precisa permanecer na UTI por dois ou três dias.

Menos tempo de hospital — acho que nem precisaria reforçar — significa corte nos custos e diminuição no risco de infecções no pós-operatório. Parece bom demais. Na comparação entre as duas técnicas a médio e longo prazo, porém, notou-se um empate: os pacientes dos dois grupos seguiram acompanhados por 28 meses e, nesse período, o tempo livre de novas metástases do câncer colorretal foi semelhante.

E quando não é um tumor vindo do intestino?

Não foi o que o estudo pretendeu ver. Ele focou, como mencionei, na metástase no fígado mais comum de todas, que é a do câncer colorretal.

"No entanto, sem dúvida, esse trabalho abre perspectivas para metástases hepáticas de sarcomas, melanomas e até de câncer de mama", opina Gobbo. No caso do câncer de mama, diga-se, é raro ele se espalhar apenas pelo fígado. Porém, pode acontecer de a mulher ter metástases nos ossos e elas estarem bem controladas pelo tratamento, enquanto as do fígado, não. Aí, a ablação pode se revelar uma excelente pedida. É que uma grande cirurgia para extirpar lesões no fígado poderia causar um abalo imunológico nessa paciente que já tem uma doença mais avançada.

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Já para aqueles tumores que nascem no próprio fígado — os hepatocarcinomas —, a ablação térmica tem sido cada vez mais utilizada e com enorme sucesso. "O limite de 3 centímetros de tamanho continua o mesmo, por questões tecnológicas", lembra o doutor Gobbo.

De todo modo, a possibilidade de "cozinhar" um tumor é tão boa — mais barata e mais segura — que fico me perguntando por que ela não é apresentada com maior frequência ao paciente oncológico.

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