Lúcia Helena

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Reportagem

Coqueluche: preocupação do governo deve ser o Brasil, não os Jogos de Paris

A situação é esta: a duas semanas da abertura dos Jogos Olímpicos, Paris é uma festa para a Bordetella pertussis, a bactéria causadora da coqueluche. Pela França inteira, já são mais de 5.000 casos e, infelizmente, 17 vítimas fatais até o final de junho, doze delas bebês com menos de 2 meses de idade. Aliás, essa doença pode matar de maneira torturante especialmente os pequenos que ainda não completaram o sexto mês de vida.

Não que o restante da União Europeia esteja uma tranquilidade: só no primeiro trimestre deste ano, foram acima de 32 mil casos da infecção, bem mais que os 25 mil registrados ao longo de 2023 inteiro. Mas a Santé Publique, agência de saúde dos franceses, assumiu na semana passada que, em seu país, eles estão vivendo uma epidemia da doença, enquanto esperam mais de 10 mil atletas do mundo inteiro. Ou seja, notícia que chega em péssima hora.

No Brasil, o Ministério da Saúde correu, então, emitindo uma nota técnica no último dia 5, na qual orienta a vacinação no SUS (Sistema Único de Saúde) dos 277 esportistas que nos representarão nos Jogos Olímpicos e dos 147 atletas que participarão dos Jogos Paralímpicos, mais os integrantes de suas delegações. Fez certo.

O problema é que, a partir daí, foi divulgado o risco de a coqueluche se reintroduzir entre nós, dizendo que repetiríamos o cenário preocupante dos europeus e reforçando a importância da vacinação antes que os viajantes, incluindo torcedores, pudessem trazer a Bordetella na bagagem ao lado de medalhas. Opa, não é bem assim!

Entre nós

A coqueluche é, de fato, uma ameaça para ser levada bem a sério. Mas a infecção já vêm crescendo por aqui, meses antes de acenderem a tocha olímpica. Ou seja, ninguém precisa trazer a bactéria de lembrancinha para estarmos encrencados.

No estado de São Paulo, até a primeira semana de junho, foram 139 casos registrados contra 16 no ano passado inteiro. Isso significa um aumento de mais de 700%! Porém, o número de diagnósticos confirmados no Brasil do Oiapoque ao Chuí é menor: 105 apenas, numa discrepância esquisita de explicar. Sim, temos problemas com a notificação de doenças em geral e os paulistas, nesse ponto, estão à frente. Começa por aí.

Portanto, mais vale olhar para o quintal de casa, onde amargamos uma baixíssima cobertura vacinal. Se no passado ela já foi exemplar, em 2022 — o ano mais recente nos registros do Datasus —, só 77% das crianças se vacinaram contra a coqueluche. Para a população ficar protegida, seria necessário que 95% estivessem imunizada, o que não faria a gente não esquentar tanto a cabeça com a situação em Paris. Nem com a temporada da Bordetella, que em todo canto ressurge com picos a cada três, cinco anos. O que deixa os franceses inquietos é que, desta vez, o pico é mais intenso e está se prolongando.

Reforço a cada dez anos

A lógica diz que, nesta altura do campeonato, muito mais brasileiros já embarcaram para a Europa por causa das férias de julho que o número de sortudos que assistirão de perto aos Jogos. Quero dizer, o alerta sobre a coqueluche no Velho Mundo vem atrasado ao focar na competição esportiva.

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Ora, duvido que boa parte dos turistas brasileiros saiba que, passada a infância, temos de nos vacinar contra a Bordetella pertussis a cada dez anos pelo resto da vida. A imunidade, conferida pela vacina ou pela infecção pra valer, não resiste mais do que isso.

"Só que esse reforço a cada década, infelizmente, não é oferecido nos postos de saúde e precisa ser tomado na rede privada", explica a pediatra Flávia Bravo, diretora da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações). Ele é ainda mais que bem-vindo para quem convive com bebês pequenos, idosos e pessoas com imunidade comprometida. Esses indivíduos também correm maior risco de a coqueluche se complicar.

Para a médica, a intenção do Ministério da Saúde ao chamar a atenção para a coqueluche é boa. Mas pondera o seguinte: "Ele aproveita a situação para mostrar às pessoas o que é essa doença, como se os Jogos Olímpicos fossem a cereja de um bolo que, na verdade, já foi assado e montado no nosso país", faz a analogia.

A doença nos adultos

"A Bordetella pertussis é uma bactéria bem frequente. Muitos adultos acabam com garganta colonizada por ela e não sentem grande coisa. Vai do organismo de cada um", explica o pediatra e infectologista Marcelo Otsuka, coordenador do Comitê Materno-Infantil da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) e vice-presidente do Departamento de Infectologia da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatra.

Uns dez dias depois de alguém ter sido infectado, o nariz começa a escorrer insistentemente. Não há febre. E, pouco depois, as crises de tosse seca aparecem. "O quadro costuma se confundir com uma alergia e termina ficando sem investigação. Ou seja, a pessoa nunca sabe que estava com coqueluche", diz a doutora Flávia Bravo ,da SBIm. Existe um teste de RT-PCR para flagrar a bactéria. Mas ele é caro e, por isso, não há a menor condição de aplicá-lo em larga escala, sempre que um sujeito tossir. Fica a dica: se a tal tosse seca e comprida não desaparece em menos de dez dias, dá para desconfiar de coqueluche.

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A transmissão

Ao tossir, milhões de cópias da Bordetella pertussis se espalham pelo ambiente de carona em gotículas que se dispersam pelo ar. E, assim, a bactéria vai infectando quem estiver por perto sem a menor cerimônia.

Calcula-se que uma única pessoa com coqueluche seja capaz de passar essa infecção para mais 15 a 17 indivíduos. Aliás, por ser altamente transmissível é que surgiu, nos tempos das nossas mães ou avós, a expressão de que algo "era uma verdadeira coqueluche", no sentido de ser um modismo que se espalhou depressa.

Quando quem pega é um bebê

Metade dos casos de coqueluche em todo o mundo acontece antes de 1 ano de idade — e, para ser precisa, 80% antes dos 6 meses. "Mesmo quando um bebê toma a primeira dose da vacina — a penta, que também o defende contra a diferia, o tétano, a hepatite B e o influenza B —, suas defesas só ficarão realmente prontas para enfrentar a Bordetella após segunda e a terceira dose, aos 4 e aos 6 meses, respectivamente", justifica a doutora Flávia.

Sem uma boa resposta imunológica, a coqueluche que começou como um resfriado evolui para uma tosse persistente, que parece sem fim. Aliás, a doença já foi conhecida como "tosse comprida". "E esse sintoma não é provocado pela bactéria em si, como muita gente imagina, mas pela reação das próprias células de defesa", observa o doutor Otkuka. "Por isso, damos antibiótico para acabar com a bactéria sabendo que ele não influenciará na tosse. Serve mais para evitar que a criança transmita esse agente para os outros."

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Não há muito o que fazer a não ser esperar dez, quinze dias, às vezes mais de mês até a tosse comprida ir embora. E, não raro, essa espera acontece em uma UTI. Dá para entender o estrago provocado por tossir umas cinco ou seis vezes na mesma expiração, quando nem há mais ar para sair. Geralmente, a criança até vomita. E, como praticamente só abre a boca para tossir, não consegue comer. Vai se esgotando, sem fôlego.

A pleura, tecido que envolve os pulmões, pode até estourar por tamanho esforço, deixando o ar entrar entre suas duas camadas. É o que os médicos chamam de pneumotórax e, no caso, as dificuldades de oxigenação pioram de vez. Podem surgir, ainda, problemas cardíacos, em função da pressão dentro do tórax, aumentada por aquele eterno tossir. "A coqueluche é capaz de causar até encefalite", avisa o doutor.

"Mas, sem dúvida, o pior é que as crianças tossem tanto que não conseguem inspirar. Vão ficando azuladas, com a língua para fora, sem conseguir puxar o ar", diz Flávia Bravo, que se lembra de ter encontrado bebês assim, na UTI, nos tempos de faculdade. "É uma cena pavorosa, inesquecível", garante. "O quadro de tosse é dificílimo de controlar."

Depois de o bebê completar 1 ano, o SUS oferece reforço na vacinação — aí , já com a tríplice viral, que protege também contra o tétano e a difteria — aos 15 meses e aos 4 anos de idade. Mas nem toda mãe completa o esquema dos filhos para evitar essa cena de terror. E mais grave: nem toda grávida se vacina também.

Por que a gestante deve se vacinar

Se o risco é alto para o bebê que ainda não recebeu todas as doses da vacina, imagine para aquele que ainda não tem 2 meses, a idade de começar a receber esse imunizante. "É por isso que vacinamos as mães, para que os anticorpos passem para o filho através da placenta", explica a doutora Flávia. "No entanto, no Brasil, apenas quatro em cada dez gestantes têm se vacinado contra a coqueluche. É uma cobertura assustadoramente baixa", lamenta a médica. E é nisso que o Governo deveria focar.

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Para o doutor Marcelo Otsuka, falta divulgação e até mesmo uma palavrinha do ginecologista obstetra na hora do pré-natal. "Além disso, há o medo infundado de que a vacina provoque algum problema no feto", nota ele. "Precisamos disseminar que as vacinas contra a coqueluche são seguras na gestação, estudadas em grávidas há décadas."

Com a cobertura vacinal do jeito que está no país, não é preciso ir longe: quem sobe ao pódio é a Bordetella.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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