Miomas: não há razão para tanta cirurgia de retirada de útero
Bolsa muscular e oca, geralmente menor que um punho fechado, o útero às vezes é desdenhado: ora, ora, se a mulher já teve filhos ou se não pretende tê-los, para que ele serviria, não é mesmo? E assim, não raro, o útero vai parar na bandeja em uma sala de operação.
A histerectomia, que trata de removê-lo, é a segunda cirurgia de médio a grande porte mais realizada nas mulheres. Entre nós, só no SUS (Sistema Único de Saúde) são cerca de 300 mil desses procedimentos ao ano. A questão é que aqui, como resto do mundo, acredita-se que metade deles tenha sido realizada por causa de um tumor totalmente benigno, o mioma.
"Todos os dias, vejo pacientes jovens cheias de miomas que ouviram do médico que o único jeito seria uma histerectomia", lamenta o ginecologista Rogério Felizi, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Essa, porém, não é a única saída e deve ser deixada para casos mais específicos, como em emergências provocadas por sangramentos uterinos muito fortes.
Especialista em miomas, Felizi sabe muito bem que eles costumam dar das caras em pacientes acima dos 35 anos, raramente antes disso. "Ainda assim, como as mulheres estão deixando para ter filhos mais tarde, muitas planejam uma gravidez nessa idade, sonho que obviamente se torna impossível pela ausência do útero", diz ele.
Seu colega Rafael Noronha, especialista em cirurgia endovascular e radiologia intervencionista, também do Oswaldo Cruz, lembra que, mesmo quando a mulher não deseja engravidar, a falta do útero pode causar certa angústia ou depressão. "A histerectomia costuma ter esse impacto psicológico", nota. "Sem contar que alguns trabalhos apontam que a retirada desse órgão afetaria o assoalho pélvico, músculo que sustenta a bexiga, entre outras estruturas."
Por essas e outras, há uma corrente de médicos que procuram preservar esse órgão sempre que possível — e, contrariando os números da histerectomia no país, quando se tratam de miomas issp seria possível na maioria das vezes.
As alternativas são as miomectomias, procedimentos que retiram apenas os miomas, e a embolização, que causa uma obstrução nas para matar esses tumores benignos de asfixia e de fome, por assim dizer.
Por que surgem os miomas?
Sabe aquela famosa pergunta de 1 milhão de dólares? Pois bem: no universo da Ginecologia, poderia ser esta. Afinal, ninguém sabe ao certo por que o mioma aparece a partir de uma das células da musculatura que forma a camada do meio da parede uterina. Ela, então, começa a crescer sem parar.
"O que sabemos é que os miomas são mais comuns nas pacientes negras", conta o doutor Noronha. "Nelas, eles tendem a se manifestar mais cedo e a serem mais numerosos. Contam, ainda, como fatores de risco a obesidade, a ocorrência de mais casos na família. Além disso, quando a mulher não teve filhos, menstruou muito cedo ou apresentou uma menopausa tardia, essa ameaça parece ficar maior."
Uma vez que o mioma surge, ele não desaparece do nada. Pode, no máximo, diminuir de tamanho na menopausa. Mas, para três em cada dez mulheres com o problema, é um pesadelo esperar até lá. Para as outras, não: a maioria vai descobrir que tem mioma no exame de ultrassom de rotina e seguir a vida como se ele nem estivesse lá. Aliás, ainda bem! Caso contrário, seria um desastre, já que até 80% das mulheres terão mioma em algum momento da vida.
Sangramento intenso e cólica sem fim
O endereço exato do mioma ajuda a prever o quanto ele poderá atormentar: se está próximo da superfície externa do útero, quando é chamado de subseroso, quando leva a menos sintomas; se é intramural, ou seja, se fica na camada muscular, bem no meio da parede uterina ou, ainda, se é o que os médicos chamam de submucoso, logo abaixo do endométrio, o revestimento interno do órgão. Este último dá mais dores de cabeça, ou melhor, dá muita cólica.
"Na verdade, o principal de todos os sintomas é o sangramento aumentado e a menstruação que se prolonga", informa Rafael Noronha. Atenção: miomas não costumam causar perda de sangue entre um ciclo menstrual e outro.
Se crescem demais, pode haver dor constante na região pélvica. Às vezes, ficam tão graúdos que chegam a comprimir a bexiga, logo abaixo do útero, provocando incontinência urinária. Ou causam constipação, se apertam o reto, a porção final do intestino, que fica logo atrás. "De todo modo, esses sintomas compressivos nunca aparecem sozinhos. O sangramento menstrual excessivo está sempre presente", esclarece o doutor Rogério Felizi.
Outro ponto é um mioma diminuir a chance de uma gravidez dar certo. A protuberância na cavidade uterina, quando se trata do tipinho submucoso, é capaz de dificultar na hora de o embrião se alojar por ali. Mesmo assim, muitas mulheres engravidam. Aí, se o mioma está grande demais, o problema é ele atrapalhar o desenvolvimento do feto ao disputar o seu espaço.
É quando um mioma passa a prejudicar a qualidade de vida que os médicos, em vez de simplesmente acompanhar o caso ou receitar remédios, como anticoncepcionais — que só aliviam os sintomas, mas não agem sobre o tumor benigno —, resolvem tratar. E é bom quando não optam sem pensar duas vezes pelo que soa mais simples, que é a histerectomia.
Como é a embolização
Rafael Noronha faz uma pequena punção na virilha da paciente sob efeito de sedação e da anestesia raquidiana, que bloqueia qualquer sensação da cintura baixo. Por ela, introduz um catéter menor que 1 centímetro, acompanhando sua viagem até as redondezas do útero por imagens em tempo real.
O dispositivo sobe pelas artérias ilíacas e, na sequência, pega o caminho de uma delas, a ilíaca interna, que lembra uma árvore frondosa. "Dela, saem ramos que irão nutrir a bexiga, os músculos da região e, claro, o útero", descreve. É neste último ramo que ele lança partículas sintéticas de 500 a 700 milésimos de milímetro. A ideia é que elas obstruam parcialmente a passagem do sangue.
Pergunto se isso não afetaria o aporte sanguíneo de todo o útero. "Não. Esse órgão é irrigado por outras ártérias também", garante. "E, como os miomas têm uma vascularização maior, o fluxo carregando as partículas acaba indo preferencialmente para eles", diz o médico intervencionista que, se fez isso no lado esquerdo, precisa repetir todo o procedimento do lado direito, mesmo que os miomas se concentrem em um lado só.
Tirando o cateter, a paciente vai para o quarto. Fica internada até o dia seguinte. É que os miomas começarão a infartar, isto é, deixarão de receber sangue. E músculo sem receber sangue direito — como o coração sabe bem — berra de dor.
O esperado é que o procedimento reduza em 90% os sangramentos e outros sintomas. Os miomas podem ficar a metade do tamanho, aliviando uma evnetual compressão nos órgãos vizinhos. O útero, que pode ter se avolumado pela presença desses tumores, então diminui também.
A retirada só dos miomas
Outra maneira de preservar o útero é a mulher se submeter à miometecomia. Segundo o doutor Rogério Felizi, ela pode ser feita de quadro maneiras. Uma delas é por histeroscopia cirúrgica "Seria comparável a uma endocospia, só que do útero", ele diz. Daí, os miomas são cortados em pedacinhos e retirados pela vagina.
A laparoscopia, realizada por pequenas incisões na barriga, é outra técnica minimamente invasiva. E, claro, sempre há a possibilidade de o cirurgião fazer o velho corte no ventre e no útero para extrair as lesões. "Só que, então, a recuperação é mais difícil, semelhante à de uma cesárea", avisa o médico, que acrescenta à lista de soluções a cirurgia robótica. Só que, apesar de ser bem mais precisa, ela continua inacessível para muita gente — não está no SUS e os planos não costumam cobrir esse procedimento para miomas uterinos.
O que a mulher precisa saber
Se um mioma que estava sendo acompanhado, mesmo sendo assintomático, cresce demais de uma hora para outra, ela deve fazer exames complementares, como a ressonância magnética, para afastar a hipótese de estar crescendo um câncer por ali, mascarado pelo tumor benigno. Seria uma terrível coincidência: miomas não viram câncer. "Por cautela, a ressonância também é necessária antes da embolização, independentemente do tamanho da lesão, porque eu não consigo fazer uma biópsia dos miomas depois para saber se tinha alguma célula cancerosa no meio", aproveita para explicar o doutor Rafael Noronha.
A embolização pode ser uma excelente opção para as mulheres que não pretendem engravidar. É que ainda não há plena segurança de que o bloqueio na circulação não atrapalharia uma gestação adiante. Nos Estados Unidos, porém, essa ressalva não existe mais.
Para duas em cada dez mulheres tratadas de um jeito ou de outro, infelizmente os miomas voltam. É necessário refazer o procedimento ou apelar para outro diferente. Esta seria a única vantagem de retirar todo o útero de uma vez.
Na miometomia, vale ressaltar a importância de o cirurgião ter habilidade para reconstruir o útero. "É preciso evitar sinéquias, que são aderências capazes de dificultar a implantação de um embrião amanhã ou depois, se a mulher escolher ser mãe", exemplifica Rogério Felizi. Ou seja, não vale preservar o útero só por preservar. É preciso mantê-lo funcional — o que, por ironia, significa deixá-lo como de costume, uma bolsa muscular e completamente oca.
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