IA vai ajudar a detectar a esclerose múltipla antes dos primeiros sintomas
Pouco a pouco, células de diversos pontos do cérebro vão perdendo seu revestimento esbranquiçado, a mielina. Sem ele, é como se virassem fios desencapados por onde os sinais nervosos teriam dificuldade para passar. E, com o tempo, sucumbem esclerosadas. Em seu lugar, sobra uma minúscula cicatriz ou um vazio. Isso se repete múltiplas vezes por todo o sistema nervoso central. Aliás, por isso o nome, esclerose múltipla, doença que acomete 40 mil pessoas só no Brasil. Dois terços delas, mulheres.
Uma fraqueza que surge do nada em uma das pernas ou em um dos braços. Talvez um formigamento chato em um dos cantos do corpo ou uma perda de equilíbrio de vez em quando na hora de caminhar — para oito em cada dez pacientes, um ou outro entre centenas de sintomas como esses dão as caras em surtos que duram apenas umas duas semanas. Depois, podem sumir por um bom tempo.
Desse jeito, parecendo um probleminha sem explicação e temporário, quem dá bola para as pistas iniciais da segunda maior causa de incapacidade neurológica em adultos jovens, ainda mais quando se tem 20 ou 30 e poucos anos?
O diagnóstico pode levar até cinco anos. "No nosso serviço, as pessoas já chegam com 30 lesões no sistema nervoso central, em média, que lembram buraquinhos na imagem de ressonância magnética", lamenta o neurologista Rodrigo Thomaz, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
O ideal, segundo ele, seria se todo mundo descobrisse a esclerose múltipla depois do primeiro ou do segundo surto, quando só acumulasse duas ou três dessas lesões. Ou até mesmo antes disso, em uma fase pré-clínica, quando a doença ainda é completamente silenciosa.
O tratamento, então, disparado sem perda de tempo, conteria o aparecimento de novos pontinhos lesionados e preservaria o cérebro o máximo possível. "Isso mudaria o curso da doença", afirma a neurorradiologista Renata Bertanha, também do Einstein. "Em vez de a gente ver a paciente na faixa dos 40 anos já acamada ou em uma cadeira de rodas, ela poderia envelhecer de maneira normal, controlando a sua condição."
Seria sonhar demais? Bem, a inteligência artificial sonha alto — assim como Gilberto Szarf, outro radiologista, que é gerente de Pesquisa e Inovação do Departamento de Diagnóstico por Imagem do hospital paulistano. Sua cabeça voou durante uma conversa com o cientista de computação Patrick de Faria, responsável por pesquisa e desenvolvimento para a América Latina na Siemens. O assunto eram os modelos multimodais de inteligência artificial. O doutor Szarf, entendendo do que se tratava essa tendência, logo disse: "Sei de algo que poderíamos fazer juntos", pensando, claro, na esclerose múltipla.
Multi...o quê?
"Multimodal", repetiu Patrick de Faria, que na última década dos seus trinta anos de carreira vem se dedicando a descobrir soluções com IA. "Quando você usa um aplicativo que faz reconhecimento facial, está diante de uma ferramenta que só usa uma modalidade: você dá uma imagem e ela apresenta um resultado", começa a explicar. "Poderia dar outros exemplos, como quando você digita um texto e recebe de volta outro texto. Mas, no modelo multimodal, é diferente."
De fato, no projeto que o Einstein e a Siemens desenvolvem lado a lado, a IA deverá receber imagens de exames, laudos médicos, histórico do paciente, resultados de testes laboratoriais, o que se sabe sobre seu estilo de vida. Depois, irá fundir esses dados tão diversos para dar sua conclusão. "Ela não será o diagnóstico, mas a probabilidade de ser esclerose múltipla", esclarece o doutor Gilberto Szarf. "Com isso, o neurologista e o radiologista terão um suporte para decidirem se deverão encaminhar o caso para um serviço especializado em esclerose múltipla, evitando toda aquela perda de tempo."
Outras expectativas
Apressar o flagrante da esclerose múltipla já não é pouca coisa. O neurologista Rodrigo Thomaz, porém, pensa em mais possibilidades: "A esclerose múltipla envolve centenas de variantes e, por mais que a máquina ainda não pense como a cabeça de um médico, ela ajudará, inclusive, a evitar erros. Não é o mais comum, mas existem pessoas que ouvem que têm esclerose múltipla, quando na realidade têm outro problema", informa. Afinal, pequenas isquemias, ou seja, minúsculas áreas que ficaram sem receber sangue no cérebro, podem dar a impressão de serem lesões de esclerose múltipla na imagem.
Segundo o médico, a IA também poderá tornar a ressonância magnética do crânio mais rápida. "Em vez de levar mais de hora, ela duraria uns 10 minutos, porque não seriam necessárias tantas imagens para a gente entender o que está acontecendo", explica, voando alto ele também. Mas, na primeira fase do projeto iniciado em fevereiro, o que se quer é fazer o diagnóstico precoce.
Antes de qualquer sintoma
E como seria possível apontar a esclerose múltipla antes mesmo de ela dar qualquer pista? "Muita gente faz uma ressonância de crânio quando vem sentindo dores de cabeça", exemplifica o doutor Thomaz. O que parece ser enxaqueca pode ser, quem sabe, o esboço da esclerose múltipla prestes a se manifestar. E, mesmo que não tenha nada a ver com isso, com o auxílio da IA, a imagem desse exame feito por causa de uma dor de cabeça poderá entregá-la.
O neurologista até defende que algumas pessoas, com maior risco de esclerose múltipla, incluam esse exame no check-up anual, se possível. Quem tem casos na família, já que o fator hereditário é importante, ou é portador de uma doença autoimune qualquer se encaixaria aí.
Pensar como um neurologista
Ou pensar como um neurradiologista, feito a doutora Renata, cujos olhos se especializaram em escrutinar apenas as imagens do sistema nervoso central e, mais ainda, em buscar doenças que roubam a mielina dos neurônios, como é o caso aqui. "A máquina precisa aprender a pensar como um médico e é no começo desse processo que estamos", ela me diz.
Para isso, a doutora e seus colegas partiram de uma lista de quase 1.200 pacientes com esclerose múltipla. Foram, então, separando aqueles casos em fase inicial e, adiante, ligaram para aproximadamente 150 deles, colhendo a autorização para usarem suas imagens de exames e, eventualmente, mais dados para alimentar a máquina.
Além disso, há o que os cientistas chamam de grupo controle: outros 150 indivíduos que não têm nada ou que apresentaram algum sinal que poderia ser confundido com os pontinhos da esclerose múltipla.
"Faço marcações, isto é, pinto as imagens, como se mostrasse à máquina: olha, isto aqui é esclerose múltipla, está vendo? E isto aqui não é", conta. Sim, a máquina aprende fazendo comparações. E o mesmo vale para outras modalidades, cujas marcações estão sendo feitas em paralelo: laudos médicos, histórico e afins. O protótipo da ferramenta deverá ficar pronto passados catorze meses.
Para quem recebe o diagnóstico cedo
Nunca é uma notícia agradável, a de que você tem uma doença neurológica incurável. O arsenal de medicamentos mais modernos, porém, consegue conter a fúria dos ataques do sistema imunológico à mielina que reveste os neurônios.
"Além disso, o estilo de vida conta bastante", informa o doutor Rodrigo Thomaz, mencionando um estudo publicado na Frontiers in Neurology no início deste ano, o qual reforça esse lado. "Parar de fumar é fundamental. O tabagismo é critério para um pior prognóstico", alerta.
O consumo excessivo de álcool e o sono de pouca qualidade são outros fatores que agravam a situação. O neurologista destaca, ainda, a dieta rica em alimentos ultraprocessados — sim, há evidências de que eles interfiram nessa história, por deixarem o organismo mais inflamado e, digamos, o sistema imunológico mais arisco.
Finalmente, guarde bem: exercício físico é remédio para quem tem esclerose múltipla. "Mas precisa ser contínuo", avisa o doutor Thomaz.
E depois?
A ferramenta com IA não será apenas do Einstein, fique claro. No futuro, quando estiver rodando perfeitamente, poderá ser acessada por médicos de todos os lugares querendo saber se devem ou não encaminhar um paciente a um centro especializado para confirmar se é esclerose múltipla.
Em novas fases, já programadas, a inteligência artificial será treinada com informações mais específicas, como o resultado do exame de líquor — o fluido que banha o sistema nervoso — e minúcias nas imagens para sugerir melhores caminhos de tratamento e acompanhamento.
E, sim, tanto aprendizado deverá ser útil para, amanhã ou depois, novas ferramentas partirem de um ponto mais adiantado para diagnosticar outras doenças do sistema nervoso. Afinal, a máquina já não será uma jovem aprendiz.
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