Será que um vídeo de celular mostraria se você está sofrendo um AVC?
Está na cara quando alguém mal começou a ter um AVC, o acidente vascular cerebral: antes mesmo de o rosto ficar nitidamente assimétrico, com um dos lados sem conseguir se mexer, há sinais sutis. Tão sutis que o olhar humano muitas vezes deixa de captar, mas que não escapariam em um vídeo gravado com a câmera do celular, se ele pudesse ser analisado com a mãozinha da IA, a inteligência artificial.
"Estamos falando de detectar a hipomimia, isto é, microparalisias dos músculos do rosto. Isso, em um primeiro momento, afeta ligeiramente a expressão facial", explica João Paulo Papa, professor da Faculdade de Ciências da Unesp (Universidade Estadual Paulista), na cidade de Bauru.
Lá, o cientista da computação coordena um laboratório, o Recogna, totalmente dedicado à biometria e aos padrões de reconhecimento envolvendo IA. "Temos cerca de 45 alunos que desenvolvem desde projetos para a Marinha até para a área médica", ele conta. "Um deles, fazendo doutorado, está participando de um programa de co-tutela. Ou seja, está passando um período no Exterior. No caso, na Faculdade de Engenharia do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na Austrália, que também irá lhe dar o título de doutor."
Por lá, Guilherme Oliveira — é como se chama o doutorando — resolveu mergulhar de vez no campo da saúde, que sempre lhe interessou. E assim surgiu a parceria entre pesquisadores da Unesp e os australianos para criar um aplicativo capaz de ser usado pela população para reconhecer o AVC bem no comecinho. Com o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), eles acabam de publicar o resultado do estudo piloto, tipo de trabalho que é feito para ver se uma ideia de investigação faz sentido. E esta ideia faz, sim.
"O modelo de IA identificou corretamente 82% dos casos, quando comparou a imagem do rosto de 11 indivíduos saudáveis com a de 14 pessoas que estavam iniciando um AVC e que, à primeira vista, pareciam normais, apesar de estarem sentido algum mal-estar", conta o professor Papa.
Três horas que valem ouro
O objetivo de um aplicativo assim seria favorecer a busca de atendimento especializado sem a perda de um tempo precioso. Ora, existe o que os neurologistas chamam de "golden hour". Em bom português, a hora de ouro.
Na verdade, trata-se do período de três horas logo depois de alguém ter um episódio de AVC. Dentro desse intervalo, a pessoa tem maior chance de, sendo socorrida em um hospital, reverter danos, ficar sem sequelas e sair desse susto com vida.
Infelizmente, a ampulheta vem escoando antes disso para muita gente. Dados apontam que nem sempre enfermeiros e socorristas reconhecem quando é um AVC logo no início — 13% falham nisso. Imagine, então, a dificuldade para quem não é da área!
Só no ano passado, mais de 110 mil brasileiros morreram em decorrência dessa interrupção brusca do fluxo sanguíneo em uma região do cérebro. Ela pode acontecer porque um vasinho arrebentou, derramando sangue. Essa espécie de vazamento na massa cinzenta caracteriza o AVC hemorrágico. Ou, então, a circulação não acontece direito porque um coágulo está interrompendo a sua passagem, como acontece no AVC isquêmico.
A medida de nossas caras e bocas
Foi ainda nos anos 1970 que o psicólogo americano Paul Ekman, professor da Universidade da Califórnia, em São Francisco, ao lado de seu colega Wallace Friesen, desenvolveu um sistema para mensurar com precisão os movimentos da face humana, com base na contração e no relaxamento de mais de trinta músculos que governam desde o piscar dos olhos ao sorriso e à articulação da fala, passando pelo franzir da testa e por tudo aquilo que faz ficar na cara o que sentimos.
De acordo com essa classificação, cada componente do movimento facial é chamado de unidade de ação. E uma unidade de ação, por sua vez, pode envolver um ou mais músculos.
"Nós já tínhamos contato com cientistas do Canadá que haviam identificado 11 dessas unidades de ação alteradas depois de um AVC", explica o professor Papa. Esse conhecimento foi usado para treinar o algoritmo a fim de que fosse possível diferenciar as características das unidades de ação de indivíduos saudáveis daquelas de quem está experienciando o problema no cérebro.
O que a pessoa precisa fazer
A ideia é que, ao sentir um mal-estar — como tontura, dor de cabeça, fraqueza em um dos lados do corpo, fala enrolada —, a própria pessoa aponte a câmera do celular para o seu rosto ou peça para alguém ajudá-la com isso.
Durante a gravação, é preciso que ela faça três coisas: erguer as sobrancelhas; em seguida, fingir que está apagando uma vela e, finalmente, falar cinco vezes poucas expressões que seriam trava-línguas, para desafiar a musculatura envolvida na articulação das palavras. Um exemplo de trava-línguas seria ficar repetindo "trigo, tigre", se fosse em português.
Aliás, este é um dos pontos. O aplicativo foi testado pelos pesquisadores australianos na língua deles. "De fato, teremos de fazer uma adaptação por aqui, no Brasil, por conta dessas frases", adianta o professor Papa.
O app também deverá ser refinado para considerar a capacidade de memória e processamento dos smartphones atuais. Para o professor Papa, porém, a etapa mais desafiadora será validar a ferramenta com um número bem maior de pacientes, por meio da parceria com hospitais e centros especializados em AVC.
É assim, envolvendo muito mais pessoas, que ele e seus colegas poderão treinar a máquina para aumentar ainda mais a precisão do reconhecimento da face de quem acabou de ter um AVC. Ora, o estudo recém-publicado foi feito a partir de imagens que já estavam gravadas em condições ideais, dentro de laboratórios.
"É na vida real que poderemos ver onde os indivíduos podem se atrapalhar com a ferramenta e o que podemos melhorar", afirma. "Mas já dá para adiantar que a captura do vídeo precisa ser adequada. O ambiente deve estar bem iluminado para a inteligência artificial avaliar corretamente aquelas unidades de ação", aponta.
Se tudo der certo, o aplicativo estará prontinho para ser submetido à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em cerca de 18 meses.
Outras aplicações
O aprendizado usado para identificar o início de um AVC deverá ser útil para os pesquisadores da Unesp desenvolverem outras aplicações da ferramenta. O professor João Paulo Papa dá o exemplo da doença de Parkinson.
"Podemos pedir para a pessoa gravar alguns vídeos do rosto ao longo do dia. Com isso, o sistema avaliará o grau daquelas pequenas paralisações na face em diversos momentos para fazer uma correlação com o horário em que ela tomou a medicação, ajudando o médico a perceber se há necessidade de ajustes no tratamento", diz ele, enxergando desde já a possibilidade do trabalho com o AVC ter alguns ótimos desdobramentos.
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