Lúcia Helena

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Reportagem

Dieta cetogênica: por que cortar carboidratos para matar o câncer é cilada

O desejo de médicos e cientistas de conter o câncer faz com que tentem cercá-lo de todas as maneiras, inclusive se perguntando: será que dá para matá-lo de fome? E, nesse sentido, a ideia de oferecer ao paciente um cardápio pobre em carboidratos pareceu uma boa pedida. O problema é que ela não cai bem para todos. Aliás, às vezes cai muito mal e, ao contrário da expectativa, faz o câncer avançar.

Alguns estudos, de fato, chegaram a apontar que uma dieta cetogênica seria capaz de frear o crescimento de tumores e metástases. Nela, os carboidratos praticamente somem do prato. Ao menos, em uma dieta cetogênica raiz, eles ocupariam uma tímida porção de 2%, ficando 8% com as proteínas e 90% com as gorduras, como na receita de médicos americanos, ainda na década de 1920, para tratar eficazmente crianças com epilepsia.

Adianto que talvez o cérebro goste desse regime quando enfrenta problemas. Isso porque, coincidência ou não, cortar carboidratos até poderia ser uma opção nos casos tumores cerebrais — ainda assim, com belas ressalvas. "O paciente acaba perdendo muito peso. Será que é isso mesmo o que queremos?", questionou Paula Cascais, em sua aula sobre a controvérsia de cortar esse nutriente no cenário do câncer. Ela aconteceu no 2.º Congresso Dasa Oncologia, pouco mais de uma semana atrás, em São Paulo.

Há 22 anos, a nutricionista foi trabalhar no Inca (Instituto Nacional de Câncer), então atendendo apenas pacientes pediátricos. Foi quando a Oncologia entrou em sua vida para nunca mais escapar. Hoje ela atua no Centron (Centro de Tratamento Oncológico), no Rio de Janeiro, que faz parte da Dasa.

O que diz uma revisão sobre o tema

No evento, Paula Cascais trouxe dados recém-saídos do forno. Ora, no primeiro semestre deste ano, foi publicada na Nutrition uma revisão de 326 artigos científicos que focavam na dieta cetogênica em diversos tipos de câncer.

"A dificuldade começa por aí", me disse ela, depois, em entrevista. "Ainda que alguns trabalhos apontem resultados supostamente bons, eles são bastante desiguais, muitos deles não foram bem desenhados, usando uma expressão do universo dos pesquisadores." Ou seja, trocam alhos por bugalhos.

Vamos lá: o que um autor considera cetogênica é diferente do que outro pensa ser uma alimentação pobre em carboidratos. Ou seja, não há uma padronização para sair dizendo se é para deixar de servir macarrão, batata ou doces à pessoa com câncer ou apenas para maneirar naquela fatia de bolo.

Boa parte dos estudos festejou o que foi observado in vitro. E tubo de ensaio não perde peso, bem entendido. Nem fica com a massa muscular enfraquecida pelo câncer. "Sem contar que algumas pesquisas envolveram um número pequeno de indivíduos ou tiveram curta duração ou, ainda, as duas coisas. E, portanto não dá para saber o que aconteceu com esses pacientes adiante, se ficaram bem ou não, se pioraram com o tempo, se conseguiram manter esse padrão alimentar, o que acho improvável", acrescenta Paula.

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O problema é que cada estudo sobre alimentação e câncer vira receita ensinada por influenciadores e até mesmo passadas por profissionais de saúde que não são especializados em Oncologia. Aí mesmo é que tudo desanda. E pode desandar feio.

A tal revisão deixou claro que, ao contrário dos tumores cerebrais, o melanoma e o câncer renal, por exemplo, parecem ficar turbinados com a dieta que faz o organismo tostar prioritariamente gordura para obter energia, gerando moléculas conhecidas por corpos cetônicos. Daí, o seu nome.

De onde veio a ideia de cortar carboidratos

Reduzir os carboidratos na dieta de quem tem câncer não é um pensamento de todo doido. Existe um racional que faz sentido à primeira vista. Para entendê-lo, lembre-se que não há melhor definição para uma célula maligna do que esta: egoísta. Ela quer tudo para si.

Se pudesse se sentar à mesa do almoço, uma célula de câncer se serviria da maior quantidade de alimento que conseguisse pegar, pouco se lixando se sobrariam migalhas de comida para os outros, que ficariam de prato vazio."Ela apela para diversas artimanhas para se favorecer e uma delas é captar uma quantidade maior de moléculas de glicose do que as células sadias para, então, proliferar", explica Paula

Sim, o câncer consome esse açúcar na corrente sanguínea. Diria que come depressa. Suas células abrem mão de uma das etapas para quebrar a glicose e transformá-la em energia. Com isso, acelera o processo. Porém, não obtêm tanta energia como se fizessem o passo-a-passo bonitinho de uma célula saudável. Mas os tipinhos vorazes e malignos dão um jeito de compensar: absorvem mais e mais glicose.

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"Tanto fazem isso que o exame de PET-scan, a tomografia por emissão de pósitrons, localiza um câncer em atividade quando flagra a glicose, usada como um marcador, aumentada em algum ponto da imagem", lembra a nutricionista. É ali que está o câncer, papando mais açúcar que os tecidos sadios.

Mas, atenção, seria simples demais cortar a sobremesa — e só. "Quando a gente não come tanto carboidrato, outros nutrientes, como gorduras e proteínas, viram glicose também", explica Paula. O que acontece de diferente na dieta cetogênica é que, apesar de você estar comendo, ela simula o que acontece com o organismo em jejum.

Os tais corpos cetônicos e o câncer

Segundo a nutricionista oncológica, depois de umas doze horas com o aporte de glicose vindo da alimentação diminuindo, o organismo já usou todo o seu estoque desse açúcar no fígado e passa, então, a queimar massa magra — leia, músculos — e gordura. Afinal, não dá para ficar sem energia. Isso gera os tais corpos cetônicos, que irão abastecer as células, como se fizessem parte de um cardápio alternativo.

A dieta cetogênica, ao reduzir drasticamente os carboidratos de alimentação e aumentar bastante as porções de gordura, mimetiza essa condição de jejum. O corpo, então, tem de se virar nos 30 com a gordura.

"Aí é que está: a célula de um tumor maligno é disfuncional. Ao contrário das células sadias, ela parecia não captar corpos cetônicos para matar a sua fome", conta Paula. Por isso a hipótese: uma dieta cetogênica poderia deixar o câncer em estado de inanição. E ela tinha mesmo de ser testada. Mas, infelizmente, nem sempre é assim.

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Como se viu recentemente, às vezes, a célula cancerosa se adapta e tira energia dos corpos cetônicos. Ou seja, a estratégia não funciona para todos os tumores. Alguns continuaram avançando de boa no ritmo de sempre. Outros, como o melanoma já mencionado, até aceleraram o passo. E não é só isso.

Outros problemas

Difícil de seguir para quem muitas vezes enfrenta falta de apetite, enjoos e diarreias durante o tratamento oncológico, a dieta que corta carboidratos tem outros senões capazes de se transformar em cilada.

O emagrecimento é um deles. "A dosagem de medicamentos quimioterápicos se baseia no peso. Se o paciente perde 10 quilos, ela precisa ser recalculada", exemplifica a especialista. E lógico que, antes disso até, enquanto o ponteiro da balança vai caindo, a toxicidade das drogas vai aumentando em paralelo, porque a dose estaria maior que a ideal. Por isso é tão importante controlar o peso do paciente durante todo o tratamento.

O câncer por si só, ao consumir vorazmente energia, já aumenta o risco de perda de musculatura, o que leva à fadiga. Nos pacientes oncológicos avançados, pode surgir a caquexia, uma síndrome grave, e a sarcopenia, que inclui a perda de peso, a diminuição significativa da massa magra e uma redução importante de força, que impossibilita o sujeito, muitas vezes, de ficar em pé.

" Não dá para bobear com a alimentação. Ela é sempre algo extremamente delicado para quem está em tratamento de câncer. Precisaria do olhar do nutricionista oncológico sempre", afirma Paula Cascais. "E cada caso é um caso, não dá para generalizar."

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Existem, por exemplo, pacientes que ficam com muito inchaço ou que engordam pra valer durante o tratamento — algo mais frequente nos tumores que envolvem hormônios, como os de mama. "Fazer dieta para emagrecer, cetogênica ou não, pode ser desastroso para um resultado que ia bem", avisa a especialista. E nem é preciso dizer o quão nocivo pode ser engolir "dicas de internet" sem orientação especializada.

Também existe aquela pessoa que fecha a boca, tomada pela inapetência. "Então, mais que ficar de olho em nutrientes, devo sugerir que ela pense em uma preparação que se vê capaz comer naquele momento", diz Paula "Pode ser um doce de infância, por que não? Sim, fontes de carboidratos. Ou outro prato qualquer. E pode ser que, na hora, ela só consiga dar duas mordidas, mas já será alguma coisa." Está certo: só quem tem um câncer sabe o que o devora.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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