Chemobrain, já ouviu falar? Quando a quimioterapia abala a memória
Quem faz quimioterapia para derrotar um câncer deveria acolher a sensação de estar avoado e reparar, adiante, se isso continua após o tratamento. Não, não é mera impressão de sua cabeça.
Desde os anos 1970, aparecem descrições na literatura médica de gente submetida à químio que não consegue mais focar nas tarefas e realizá-las tão bem, nem se lembrar direito de nomes, datas, onde deixou objetos, o que fez ou o que deixou de fazer dias ou horas antes, precisando anotar as coisas para não se perder no dia a dia.
A queixa, porém, acaba sendo abafada nos consultórios, inclusive porque há outras prioridades quando a vida está em jogo. E até porque, vamos admitir, ela se confunde com sintomas de estresse ou até mesmo de depressão pela descoberta de um tumor maligno, no complexo emaranhado emocional em que se vê o indivíduo com esse diagnóstico.
Mas saiba: o quadro conhecido por chemobrain (lê-se "quimobrein") é real, zero subjetivo ou fruto da imaginação. O nome em inglês se refere aos efeitos da quimioterapia nos neurônios cerebrais, levando a um declínio cognitivo que pode se traduzir em déficit de memória, dificuldade de atenção e de função executiva, como se a pessoa se tornasse mais lenta para processar informações.
"Isso chega a acontecer com 75% dos pacientes em vigência de um tratamento quimioterápico, independentemente do tipo de tumor", conta Rafael Paternò, neurologista do Hospital Nove de Julho, em São Paulo, que deu aula sobre o tema no 2.º Congresso Dasa Oncologia, realizado em agosto. "E, depois do tratamento, o chemobrain persiste em até 15% a 20% dos casos", informa ele.
Por que a memória pode sair prejudicada
As células cancerosas, não importa onde tenham surgido, têm algo em comum: elas se dividem de modo vertiginoso. As drogas quimioterápicas, por sua vez, agem por mecanismos diversos colocando um freio nessa divisão. Essa tática faz o câncer, no mínimo, estacionar, quando não leva as células malignas à morte.
Já no nosso cérebro, os neurônios em geral não se dividem. Portanto, você poderia pensar que eles jamais seriam alvos desses medicamentos que, afinal de contas, acabam acertando sem querer em tudo o que se renova ou se multiplica muito depressa no organismo — não à toa, os cabelos que, em condições normais, não parariam de crescer, muitas vezes terminam caindo.
"Acontece que há exceções", explica o doutor Paternò. "Por exemplo, aqueles neurônios localizados no hipocampo, área cerebral fundamental para a memorização, se dividem, sim, para você conseguir gravar novas lembranças. Daí que, quando o quimioterápico inibe essa capacidade de divisão, ele vai criando uma dificuldade objetiva para a fixação de memórias."
Além disso, o cérebro é um grande consumidor de glicose, liberando uma boa quantidade de radicais livres potencialmente nocivos ao gerar energia, da qual consegue dar conta normalmente. Só que as drogas quimioterápicas são capazes de catapultar essa produção de radicais livres. E, de quebra, provocam inflamação nos neurônios. Enfim, tudo indica que a cabeça pode sair abalada, ainda que temporariamente.
É difícil prever
Não é tão simples para qualquer substância entrar no cérebro. Isso porque ao seu redor há uma estrutura formada por diversos tipos celulares — digamos que colados uns nos outros —, chamada barreira hematoencefálica. O doutor Rafael Paternò acha que, lá o fundo, esse nome induz a um erro de compreensão: "Ao ouvir a palavra 'barreira', a gente imagina um muro. E, na realidade, a melhor comparação seria com uma catraca, que libera ou não a passagem de moléculas que circulam no sangue", diz ele.
No entanto, o que seria capaz de destravar essa espécie de catraca cerebral varia de indivíduo para indivíduo. "É uma característica geneticamente determinada", justifica o neurologista. Então, começa por aí: o quimioterápico que levou determinado paciente a reclamar de um déficit cognitivo pode não ter permissão para entrar no cérebro de outra pessoa. "E não há um teste para a gente saber quem é quem e no que o tratamento do câncer poderá dar, em termos de impacto na cognição", afirma o médico.
Um esclarecimento: não pense que a entrada pela barreira hematoencefálica é na base do tudo-ou-nada. Em boa parte das vezes, só um pouco da droga quimioterápica consegue passar, uma quantidade que nem seria suficiente para tratar o câncer. Mas essa concentração mínima já pode ser neurotóxica.
Atenção: quimioterapia não causa Alzheimer
Essa pode ser uma grande confusão. Calma: o impacto da quimioterapia na cognição costuma ser leve. A maioria dos pacientes com chemobrain irá manifestar por um determinado período ou de maneira persistente o que seria esperado no processo de envelhecimento cerebral normal. E vamos deixar claro que não é nada, nada normal a gente ficar esquecido quando se torna idoso. "Existe muito senhor de 90 anos com memória melhor que a de pessoas de 30 ou 40", nota o doutor.
Claro que há pequenas alterações cognitivas com o passar do tempo. É esperado que alguém demore um pouco mais para completar tarefas que exijam bastante raciocínio ou que se atrapalhe ligeriamente ao fazer duas coisas simultaneamente, por exemplo. Nada que comprometa demais a função cerebral no cotidiano. Em condições ideais, essas perdas da idade se mantêm em uma faixa intermediária na qual a pessoa já deixou de ter a cabeça da juventude, só que sem ultrapassar um ponto em que há manifestações clínicas de demência.
"No caso do Alzheimer, é um pouco diferente. Há uma produção aumentada de placas de proteína amiloide no cérebro, que é o que a gente encontra em até 30% dos indivíduos com mais de 80 anos.", explica o doutor Paternò. "Eles, porém, não necessariamente desenvolvem a demência típica dessa doença. Muitos, talvez, morram dali a alguns anos sem problemas perceptíveis de memória. Mas, se precisarem fazer quimioterapia, o que seria um leve déficit cognitivo provocado pelo tratamento do câncer poderá representar o bastante para ultrapassarem aquele limiar da faixa, a partir do qual os problemas de memória se manifestam pra valer."
Ou seja, a quimioterapia é capaz de desmascarar essa e outras doenças neurogenerativas que já avançavam silenciosamente, mas não causá-las. E, seguindo o mesmo raciocínio, o chemobrain tende a ser mais percebido em pacientes oncológicos idosos. Outra vez porque o déficit que provocado pelo tratamento do câncer se soma ao declínio da idade.
Para manter a saúde cerebral
O que dá a altura daquela linha a partir da qual as dificuldades de cognição ficam na cara é o que os neurologistas chamam de reserva cognitiva. Ele sobe se você vive estimulando a mente com novos aprendizados. E se pratica exercício físico, come alimentos caseiros — com destaque para os que são ricos em antioxidantes, como os vegetais, e em ácido graxo ômega-3, como os peixes de água fria —, além de dormir direito, noite após noite.
"Esses hábitos fazem com que seja mais difícil alguém se ressentir de um acidente em que machuca a cabeça ou de uma infecção ou, ainda, de uma quimioterapia", afirma o neurologista, citando exemplos do que, na contrapartida, pode baixar a tal reserva de cognição.
Quando já aconteceu
Para o médico, o paciente com câncer vive estressado entre mil compromissos e tomadas de decisões. São consultas, exames, idas ao hospital, reabilitação? "Não creio que seja o momento para encaminhá-lo ao neurologista, criando uma obrigação a mais", diz ele, com sinceridade.
Quando o tumor entra em remissão, aí é outra história. "Sobrevivemos à guerra, agora vamos cuidar dos feridos", comenta o doutor. Nessa hora, o neurologista entra em cena até para saber se é mesmo um caso de chemobrain. "Se, por um lado, o problema é subdiagnosticado porque as pessoas acham normal não estarem raciocinando direito, atribuindo isso ao nervosismo com a doença, por outro não podemos sair falando em efeito quimioterapia sem fazer exames para descartar outro problema qualquer", explica.
Ele costuma checar no hemograma sinais, como a anemia, que levam à desconfiança de uma deficiência de vitamina B12 e de ácido fólico. "A B12, por exemplo, participa do processo de divisão celular dos neurônios e sua falta afeta a memória", ensina.
O mau funcionamento da tireoide e até mesmo infecções também podem atrapalhar a memorização e devem ser rastreados. Exames de imagem entram na lista de pedidos médicos. "Além disso, temos de afastar a possibilidade de uma depressão que se confundiria com declínio cognitivo", lembra Paternò.
Finalmente, a peça-chave é a avaliação neuropsicológica, uma bateria de testes cognitivos. O resultado é comparado com o da média de pessoas do mesmo sexo biológico, idade e nível educacional. Se estiver fora do esperado, a suspeita de chemobrain cresce.
Talvez, então, seja o caso de sugerir ao paciente uma reabilitação cognitiva, feita por profissionais especializados, com exercícios e tarefas apropriados para melhorar a função cerebral. A maioria melhora um bocado. O chemobrain costuma passar ou aliviar. E, com sorte, só câncer cai no esquecimento.
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