Lúcia Helena

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Reportagem

Seu cardiologista já perguntou se você vive em um lugar silencioso?

A pergunta que está no título desta coluna foi feita de um jeito um pouco diferente à audiência de médicos na primeiríssima manhã do ESC 2024, o congresso da European Society of Cardiology, em Londres, na semana passada. "Vocês costumam checar com os seus pacientes se eles moram ou se trabalham em um lugar silencioso?", indagou o cardiologista Thomas Münzel, dirigindo-se aos seus colegas.

Professor da Johannes Gutenberg University, em Mainz, na Alemanha, onde lidera o Departamento de Cardiologia, desde 2011 seu grupo de investigação é focado nos fatores de risco do meio ambiente por trás das doenças cardiovasculares. E, entre eles, o que fala mais alto em seu centro de pesquisas, além da poluição do ar, é justamente o barulho. Diga-se de passagem, Thomas Münzel foi um dos pioneiros em apontar que sofre mais do coração quem vive sob a rota de aviões. Não há peito que não se aflija com o volume das turbinas.

"Quando pensamos em problemas do coração, a poluição sonora é, talvez, o fator de risco mais subestimado de todos. Aqui, eu me refiro principalmente ao barulho dos meios de transportes", disse, sem erguer a voz, mas defendendo com veemência que as pessoas precisam dar ouvidos a isso para protegerem a sua saúde. E acrescentou, subindo um tom: "Está na hora de a provocação que acabo de lhes fazer — se vocês perguntam, ou não, sobre o nível de barulho no ambiente onde vivem seus pacientes — ser incluída em diretrizes de Cardiologia, bem como medidas antirruído, se necessárias, para pessoas que já têm hipertensão, por exemplo."

Ele se apoia em números estrondosos. "Todos os dias, perto de 150 milhões europeus são expostos constantemente a sons acima de 55 decibéis, porque moram próximos a estradas, na vizinhança de aeroportos, ao lado de linhas de trem ou, o que é bem comum, em ruas com trânsito intenso", revela. No mesmo instante, pensei: não é preciso estar na Europa para dormir com um barulho desses!

Números do barulho

Em sua aula, o professor Münzel apontou estudos recentes feitos para a EEA (European Environment Agency), segundo os quais esse dia a dia ruidoso tem sua parcela de responsabilidade por, pelo menos, 900 mil casos de hipertensão no Velho Continente.

"Para completar, o excesso de barulho leva a consequências que, indiretamente, também afetam a saúde cardiovascular. Por exemplo, 6,6 milhões de europeus enfrentam distúrbios de sono porque seu repouso é perturbado por sons altos em plena madrugada", informa. "Outro efeito com potencial para afetar o coração é a irritabilidade: a EEA calcula que 22 milhões de indivíduos no oeste da Europa tenham esse sintoma exacerbado por causa a poluição sonora incessante."

Cientistas como o cardiologista alemão usam modelos matemáticos e fazem cálculos complicados até chegarem a resultados assim. Mas é claro que, na prática, ninguém sairá por aí dizendo que uma pessoa tem pressão alta só porque seu endereço não é dos mais silenciosos, sem considerar todo um pacote que inclui fatores genéticos, histórico familiar, outras possíveis doenças abalando os vasos, envelhecimento, uso de determinadas substâncias, comportamento alimentar com destaque para as pitadas exageradas de sal e muito mais.

No entanto, podemos entender que a poluição sonora entraria nessa lista, talvez sendo um empurrão extra, capaz de fazer diferença para alguns. "Se conseguíssemos manter o nível de ruído ao nosso redor até 55 decibéis a maior parte do tempo, nossa estimativa é que pouparíamos 110 mil vidas por ano na Europa", contou. Esse seria um limite bom para o coração em qualquer parte do mundo. Aliás, defendido pela Organização Mundial da Saúde.

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Níveis de ruído

O farfalhar das folhas de uma árvore tem, aproximadamente, 10 dB, ou decibéis. Um nada. Música para os ouvidos e paz para o coração. O tic-tac do relógio tampouco incomodaria, isto é, se muita gente ainda usasse o tradicional marcador de horas, com seus cerca de 20dB. Alguém sussurrando? São 30dB, não mais que isso. A chuva forte, mas sem trovoadas? Uns 50 dB, volume um pouco mais baixo que o de uma conversação em tom de voz normal. Ao longo da noite, um quarto silencioso ficaria entre isso, com seus 40dB, já que sempre há algum barulhinho do lado de fora.

"O limite, se a gente for ver, é facillmente ultrapassado com o motor de um veículo. Um carro de passeio produz um som de cerca de 70dB. Quando é um caminhão, esse volume sobe para 90dB. O avião na decolagem, porém, eleva esse nível para 120 dB. Para ter ideia, uma britadeira produz um som de seus 100 dB", lista o professor.

Pergunto sobre o telefone tocando, com seus 80 dB e vi, na imagem de sua aula, que um conserto de rock expõe os baladeiros a volumes de até 110 dB. "Pode ser terrível para a saúde dos ouvidos ir a um show de sua banda favorita e ficar perto de caixas de som. Para o coração, porém, esse é um programa extraordinário, que não acontece sempre", explica o professor. "O problema é a poluição sonora dia após dia. Diria até pior quando é noite após noite. Por isso falamos tanto dos meios de transporte, que são fontes de ruído quase permanentes."

O que entra pelos ouvidos fica pelo coração?

Há diversos estudos mostrando os efeitos do barulho em excesso sobre a pressão arterial. Por mais que você ache que sabe o que está acontecendo — "ora, é só um carro lá fora", vamos supor —, no cérebro o som alto do motor é quase um susto. Logo, morar em uma avenida com tráfego intenso é levar um susto atrás de outro.

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"Experiências com camundongos, realizadas há mais de década, deixaram claro que a poluição sonora deixa excitada uma área no meio do cérebro conhecida como amígdala", ensina o professor. "Daí, ela aciona imediatamente a glândula hipófise, também no cérebro, que irá se comunicar com as glândulas suprarrenais, sobre os rins, entre outros efeitos."

O que se vê, então — e que, depois, também se confirmou em seres humanos —, é uma cascata de hormônios relacionados ao estado de estresse. "O organismo se prepara para encarar uma ameaça: as artérias se contraem e o sangue precisa fazer mais força para passar. Logo, a pressão que a circulação exerce sobre suas paredes aumenta", descreve o professor Münzel. "Imagine isso o tempo inteiro! O sistema nervoso central também ativa células de defesa, desencadeando um estado inflamatório baixo, porém constante, que não é nada bom para os vasos. Para completar, nossas pesquisas mostram que, na exposição à poluição sonora, o estresse oxidativo aumenta, isto é, a produção de radicais livres que favorecem o envelhecimento das artérias e a formação de placas."

Logo, tudo isso não leva apenas à hipertensão. Thomas Münzel fechou sua aula com chave de ouro, exibindo um trabalho fresquinho, assinado por ele e recém-publicado na revista Circulation. Na verdade, uma revisão de fôlego que mostra a associação entre o barulho produzido por meios de transporte e a ocorrência de infarto, AVC e arritmia, além da pressão alta.

O curioso: ele e seus colegas compararam a saúde cardiovascular de pessoas expostas ao mesmo nível de poluição sonora. Descobriram que não é só uma questão de decibéis. A resposta cardiovascular é pior quando alguém vive em um lugar onde há duas ou mais fontes de ruído. Por exemplo: em uma rua movimentada próxima de um aeroporto.

Para silenciar a ameaça

Tudo bem, o cardiologista pergunta se você vive em um lugar barulhento. E se a resposta for "sim, doutor"? De fato, algumas medidas necessárias na visão do especialista não estão ao nosso alcance de imediato. Ele sugere políticas públicas que favoreçam a aquisição de carros elétricos, por exemplo. Além de poluírem menos o ar, eles são menos ruidosos.

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O professor também vê com bons olhos leis que impeçam trafegar em alta velocidade por avenidas depois de certo horário, se houver residências na região. E justifica: "Os danos ao sistema cardiovascular são muito mais sérios à noite. Já provamos que a produção de substâncias inflamatórias é alavancada quando um som alto irrompe na madrugada, se o indivíduo está dormindo. Aliás, o aumento da pressão arterial é significativo e preocupante quando a poluição sonora se mantém noite afora."

Por conta disso, é recomendável todo tipo de barreira para os sons indesejáveis não lhe alcançarem — de janelas antirruído para quem vive (e, principalmente, dorme) em ruas muito movimentadas a protetores auriculares. O coração precisa de um pouco de silêncio.

Nota de esclarecimento: a colunista viajou para cobrir o ESC 2024 a convite de Bayer.

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