Lúcia Helena

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Insuficiência cardíaca: por que um remédio está chamando tanto a atenção

Aquele ditado antigo dizendo que "todos os caminhos levam a Roma", de uma época em que o Império Romano era o umbigo do mundo, poderia perfeitamente ter a seguinte versão na Cardiologia: todos os perrengues do coração levam à insuficiência cardíaca.

A hipertensão não controlada? Termina em insuficiência. O infarto? Acaba nisso também. A fibrilação, as arritmias graves, a síndrome coronariana crônica? Idem. E, para engrossar a lista, os males que castigam o peito, como o diabetes e a obesidade. Sem contar o próprio processo de envelhecimento, natural da vida, colocando uma camada a mais de perigo. E que perigo!

Trata-se, simplesmente, da maior causa de morte de pessoas acima dos 60 anos, embora pouquíssima gente se dê conta disso. E antes de partir — o que, em média, acontece cinco anos após o diagnóstico —, vivendo com insuficiência cardíaca, o indivíduo corre ao hospital a toda hora. "Aproximadamente um terço dos leitos em hospitais cardiológicos do mundo é ocupado por causa dessa condição", calcula o cardiologista Pedro Schwartzmann, coordenador e pesquisador do Caped Centro de Pesquisa, em Ribeirão Preto, cidade onde também é professor colaborador da pós-graduação da USP (Universidade de São Paulo).

A gente teme, por exemplo, o infarto, mas..."Ele seria um problema de encanamento, uma artéria do coração entupida", compara o doutor Schwartzmann. "No entanto, a sequela é uma doença na alvenaria da parede desse órgão, isto é, no seu músculo."

Se quer números, hoje esse "problema de alvenaria" acomete mais de 60 milhões de indivíduos ao redor do globo e de 2% a 4% da população brasileira. Não à toa, a ansiedade dos médicos para saber em primeira mão dos resultados do estudo FINEARTS-HF, apresentado no dia 1.º de setembro durante o ESC 2024, o congresso da European Society of Cardiology. Muitos deles, dois dias antes, na abertura do evento, já apostavam que esse seria o seu ponto alto. E se apinharam, conseguindo lotar a sala Londres, a maior de todas do ExCel, o centro de convenções na cidade que lhe dá o nome.

Existia razão para tanta ansiedade

O doutor Schwartzmann estava lá, sendo um dos investigadores desse estudo, realizado em 37 países para a checar se uma droga, a finerenona, seria uma opção terapêutica capaz de evitar mortes e hospitalizações em casos de insuficiência cardíaca.

"O Brasil, diga-se, teve uma participação incrível, com 185 pacientes vindos de 19 centros", comenta José Francisco Saraiva, professor de Cardiologia da Faculdade de Medicina da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Campinas, que foi outro investigador do FINEARTS-HF. "E todos os participantes foram acompanhados por um período de 32 meses!", espanta-se, ao se lembrar do desafio de segui-los, sem que ninguém abandonasse o barco. Isso porque o estudo se desenrolou em plena pandemia de covid-19.

Na plateia, também estava o cientista alemão Peter Kolkholf. Sua expectativa nas alturas era compreensível. Afinal, foi ele quem descobriu a molécula do remédio, a finerenona, nos laboratórios da farmacêutica Bayer. Por uma dessas coincidências, a pesquisa — longa, como a de qualquer medicamento —, tinha começado em outro 1.º de setembro, exatos 25 anos antes.

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Mas a finerenona, que levou um quarto de século até esse ápice, já estava disponível no mercado, inclusive no Brasil. E seu comprimido diário já é usado para tratar doença renal crônica e proteger o coração. Por que o auê, então? Aí é que está: existem dois tipos de insuficiência cardíaca.

"Como sabemos, uma delas conta com boas alternativas de tratamento", disse Scott Solomon, professor de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, no palco onde anunciaria os resultados do estudo, guardados a sete chaves até aquele momento, quando saíram simultaneamente no New England Journal of Medicine. "Para a outra forma, porém, tínhamos opções muito limitadas para ajudar nossos pacientes", continuou. Ao usar o verbo no passado — "tínhamos" — conseguiu que o coração dos que o assistiam acelerasse de entusiasmo.

Insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida ou preservada?

Ah, esses nomes da Medicina não ajudam muito... Mas precisamos entender o que é essa dupla para compreendermos o significado do estudo que muitos acreditam abrir uma nova era na Cardiologia. E para ver que, talvez, sem querer agourar má saúde para ninguém, seus resultados poderão ser um alento para pessoas como eu ou como você ou para alguém próximo de nós. É que a tal insuficiência cardíaca de fração preservada — foi nela que os pesquisadores miraram — se torna mais e mais comum.

"Antes, quando comparávamos os números dos dois tipos, falávamos que era metade, metade", explica o doutor Pedro Schwartzmann. "Agora, calcula-se que 60% dos casos sejam de fração preservada." Faz total sentido se tornarem maioria, porque esse tipo, embora também seja disparado por fatores como a hipertensão, é mais comum em idosos — e, ora, a população envelhece. Além disso, é bem mais frequente em pessoas com diabetes ou acima do peso. "Tanto que, entre os participantes do estudo, a média de IMC, o índice de massa corporal, era 30, bem no limite entre o sobrepeso e a obesidade, doença que também não para de crescer", acrescenta o professor Francisco Saraiva.

Quando um cardiologista fala no outro quadro, o da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida, está se referindo ao que popularmente é chamado de coração fraco. "Ele fica dilatado, especialmente uma de suas câmaras inferiores, o ventrículo no lado esquerdo, que bombeia o sangue oxigenado para o corpo inteiro", descreve a cardiologista Lídia Zytynski, professora da PUC (Pontifícia Universidade Católica), no Paraná. "Por isso, perde o vigor para ejetar o sangue como antes. Daí a 'ejeção reduzida' do nome. No final, isso é como uma onda que afeta diversos órgãos."

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O inchaço começa pelos pés, ressentidos do fluxo sanguíneo prejudicado. "Com o tempo, vai subindo pelas pernas, chega ao tronco. O paciente termina inteiro inchado", diz ela. Mas o cansaço e a falta de ar é que são a marca registrada da insuficiência cardíaca. Aliás, daquela com fração de ejeção preservada também.
"Os pacientes percorrem consultórios de diversas especialidades, como a Pneumologia, sem obter um diagnóstico correto", nota o cardiologista José Rocha Faria Neto, também professor da PUC do Paraná e presente na apresentação do estudo.

Segundo ele, o atraso para flagrar os casos com fração preservada costuma ser maior. Entendo: alguns atribuem o fôlego curto ao excesso de peso. E, com a demora, tudo se agrava. Nesse tipo, o problema não é um coração com certa frouxidão. Ao contrário, ele se torna rígido. Contrai para lançar o sangue com a força esperada — por isso, os médicos falam em "ejeção preservada". A questão é outra: graças à rigidez, não relaxa. E seria no relaxamento que se encheria de sangue novamente. No final das contas, a circulação fica terrivelmente comprometida também.

O que se vê no exame

O que confirma uma insuficiência cardíaca é o ecocardiograma. Quando é um quadro de fração de ejeção reduzida, o problema salta aos olhos na sua imagem. O diagnóstico da fração de ejeção preservada, no entanto, exige maior atenção. Afinal, a força com que o sangue é ejetado parece normal. Mas há outras pistas.

Uma delas é o aumento do átrio esquerdo, a câmara do coração logo acima do ventrículo que ejeta o sangue para o corpo. Ora, se o ventrículo está rígido, a pressão fica maior na parte que o antecede. Só que, como o átrio é mais complacente, ele cede ao ser pressionado e se alarga. Essa é uma das diferenças que o ecocardiograma poderá entregar.

Como age a finerenona

A molécula bloqueia o receptor de um hormônio, a aldosterona, produzido pelas glândulas adrenais. "E é ele que está por trás de muitos dos sintomas da insuficiência cardíaca, como os inchaços e, nos casos de fração de ejeção preservada, do processo que leva à rididez do músculo do coração", explica o criador da droga, Peter Kolkholf.

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Não é de hoje que se sabe que ocupar o lugar do receptor da aldosterona poderia render um bom tratamento. O problema é que todas as medicações testadas com essa finalidade faziam o potássio se elevar no organismo, causando arritmias ameaçadoras. "A finerenona, contudo, não abalou os níveis desse mineral na maioria dos participantes", assegurou o professor Scott D. Solomon, de Harvard. "E, mesmo quando ele aumentou, não houve episódios sérios, que necessitariam de atendimento de emergência."

O que mostra o estudo

Os 6.016 participantes foram divididos entre aqueles que usaram placebo, um remédio falso, e finerenona. Na comparação, a molécula legítima foi capaz de reduzir em 16% o desfecho composto de hospitalizações e mortes. Na verdade, separando as coisas, a redução de hospitalizações foi até maior, girando em torno dos 18%. Já a diminuição da mortalidade, embora tenha ocorrido, não foi tão significativa.

"Mesmo assim, é uma vitória imensa. Para muitos pacientes, o medicamento devolve a qualidade de vida", comemora o professor Saraiva. Sem contar o que representa, em termos de custos para a saúde pública e privada, diminuir o número de internações. O cardiologista Pedro Schwartzmann observa, ainda, o seguinte: "Os pacientes com essa insuficiência costumam ter outras doenças capazes de matar". Ou seja, a falta de impacto na mortalidade não tira o brilho do resultado.

Até o momento, além de diuréticos, esses pacientes só contavam com uma classe de medicamentos conhecida como inibidores da SGTL-2. Sozinhos, eles não reduziam tanto as hospitalizações quanto todos gostariam. Agora, a expectativa é de que sua união com a finerenona faça a diferença, o que é uma boa notícia pra valer.

Nota de esclarecimento: a colunista viajou para cobrir o ESC 2024 a convite de Bayer.

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