Chuvas e queimadas são mais um motivo para manter a vacinação em dia
Sexta-feira passada, 20 de setembro, o Brasil registrava um acúmulo de mais 200 mil focos de incêndio ao longo de 2024, 73 mil deles nesse mesmo mês ou cerca de 1.900 só naquele dia.
Na natureza, o que poderia servir de isqueiro na vegetação seria a queda de raios durante tempestades. Mas, como a situação é o oposto disso — vivenciamos a maior estiagem dos últimos 40 ou 70 anos, conforme o bioma de que estamos falando —, fica claro que é mesmo a mão do homem que vai lá atear o fogo. E encontra, como parceira no crime, a falta de ventos e de umidade no ar e na terra.
Sexta-feira passada, também, no Recife onde a brisa soprava como se pudesse levar para longe a lembrança das mudanças climáticas entre os participantes da 26ª Jornada SBIm, que é o encontro anual da Sociedade Brasileira de Imunizações, o infectologista Julio Croda trouxe o assunto de volta à mente. "Não é fácil, mas é um tema atual. E é importante a gente encará-lo, dentro do conceito de 'one health'", disse, logo no início de sua aula sobre vacinação e meio ambiente.
O conceito de one health, que pode ser muito bem traduzido por "uma só saúde", anda cada vez mais discutido na Medicina. Implica assumir que, para vivermos livres de doenças, precisamos recuperar a saúde do planeta e manter bem todas as suas espécies — refrescando a memória de que também somos bichos neste mundo, cujo equilíbrio é o que garantiria nossa sobrevivência. One health é, ainda, lembrar que a nossa saúde está conectada com a do outro ao nosso lado, com a dos estranhos na rua, com a da população inteira — e isso tem tudo a ver com nos vacinarmos para ficarmos protegidos e, de quebra, não passarmos infecções aos demais.
Professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e da Yale School of Public Health, nos Estados Unidos, além de pesquisador da Fiocruz e membro da Câmara Técnica de Assessoramento em Emergências em Saúde Pública do Ministério da Saúde, Julio Croda exibiu um gráfico, publicado na revista científica Nature Climate Change, que mostra como doenças infecciosas podem ser agravadas por eventos climáticos. Entre eles, aquecimento global com ondas insuportáveis de calor, excesso de chuvas levando a inundações e, em outro extremo, secas impressionantes, desmatamentos e, sim, queimadas.
Recentemente, quando cidades como São Paulo, Ribeirão Preto e tantas outras acordaram sob um cobertor de fumaça, talvez ninguém tenha pensado no risco de infecções. "É mais lógico a gente se preocupar com alergias e problemas cardiovasculares ao ver o horizonte poluído", reconhece o professor. "Mas a ameaça de doenças infecciosas também é capaz de aumentar."
Fumaça, infecções e vacinas
Uma das explicações, já bem documentada pela ciência, é simples: a fumaceira não faz nada bem. A poluição provocada pelas queimadas reduz a imunidade e deixa as vias por onde o ar viaja até nossos pulmões completamente inflamadas. Vias aéreas que, diga-se, precisam de umidade para resistirem à sujeira e que, no entanto, andam castigadas pelo tempo seco. Esse combo é um empurrãozinho para qualquer agente infeccioso avançar na direção do território pulmonar, sem grandes obstáculos pelo caminho.
Mas não é só isso. Os agentes infecciosos tendem a se espalhar com maior facilidade, surfando em partículas ultrafinas, que ficam em suspensão, aos montes, no manto sujo que paira no ar. E essas partículas, por sua vez, podem literalmente ir fundo nos pulmões, entregando o causador de encrenca em área nobre.
"A gente sabe, por diversos estudos, que essas partículas ultrafinas aumentam a vulnerabilidade a infecções como tuberculose e covid-19", informa Julio Croda. Na realidade, eleva a ameaça de infecções respiratórias em geral, incluindo no pacote a gripe, a bronquiolite, as pneumonias. Para todas, há imunizantes. Mas será que as pessoas estão ligadas que eles se tornam ainda mais fundamentais nesse ar poluído (e não só pelas queimadas)?
Outros eventos climáticos
O artigo mencionado pelo professor Julio Croda, assinado por cientistas da Universidade do Havaí, nos Estados Unidos, e da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, é interessante porque vai além daquela história de que as mudanças climáticas são capazes de fazer emergir novas doenças — como a covid-19, uma zoonose, isto é, uma infecção que passou de animais selvagens para o homem, pelo contato cada vez mais estreito entre eles, em função das cidades invadirem áreas ocupadas por matas.
Os pesquisadores fizeram uma análise complexa, cruzando dados sobre meio ambiente e 375 agentes, como vírus e bactérias, que sabidamente já infectam a humanidade. Conclusão: 218 deles, ou 58%, devem se tornar ameaças muito mais graves devido às mudanças climáticas, as quais causam eventos extremos que lamentavelmente tendem a ser mais frequentes e mais intensos, como as chuvas no Rio Grande do Sul.
"Há estudos apontando que o Brasil será o país mais impactado por essas mudanças do clima na Terra", diz Croda. "A sociedade brasileira deve se preparar. Os cientistas, por sua vez, precisam trabalhar em colaborações internacionais para entender como essas doenças se disseminam. E é necessário um maior investimento na pesquisa de vacinas. Até porque, para muitas dessas infecções, ainda não há imunizantes. "
E, quando há, eles nem sempre são procurados pela população, como esperado.
De olho nas doenças transmitidas por vetores
Se perguntam a Julio Croda quais infecções deverão ser maior motivo de preocupação no futuro por conta do impacto climático, ele nem sequer pestaneja: "Aquelas transmitidas por vetores", responde. Entram na lista desde a doença de Chagas e a malária à lista enorme de arboviroses, causadas por vírus que são transmitidos pela picada de mosquitos e carrapatos. São exemplos dengue, zyka, chikungunya e febre de oropouche.
Não são apenas os desmatamentos crescentes que acendem uma luz amarela. "É claro que, no caso do Aedes aegypti, transmissor da dengue, a expansão geográfica chama a atenção, com o mosquito agindo no Rio Grande do Sul, onde ele não era comum, e provocando surtos como nunca vimos antes na cidade de São Paulo", comenta. "Mas o que impressiona ainda mais é o seu ciclo de vida, que ficou acelerado com o aumento da temperatura global. O período entre ovo, larva, pupa e, finalmente, mosquito, hoje é muito mais rápido. Com isso, há uma população maior de Aedes picando as pessoas."
O infectologista nota que a OMS (Organização Mundial da Saúde) já considera a dengue entre as dez doenças com maior potencial para abalar a saúde pública em todo o mundo, chegando a lançar um manual de preparação para uma nova pandemia com foco especial em arboviroses como ela. De novo, talvez as pessoas não tenham uma ideia clara disso.
No Brasil, o Ministério da Saúde distribuiu 4,7 milhões de vacinas contra a dengue nos postos do SUS (Sistema Único de Saúde). Não há, em nenhum canto do mundo, esforço parecido para enfrentar essa doença. Mas, na própria Jornada SBIm, o infectologista Eder Gatti, diretor do PNI (Programa Nacional de Imunizações), revelou que a taxa de cobertura dessa vacinação está em 48,8%.
Ou seja, por enquanto, menos de metade dos meninos e das meninas entre 10 e 14 anos, faixa etária escolhida como prioritária para a imunização, aproveitou a chance de se proteger. Aliás, na prática, nem isso: 521 mil jovens receberam apenas uma das duas doses preconizadas. O esquema vacinal incompleto não garante defesas contra a dengue.
E as chuvas torrenciais?
Além de proporcionarem condições para a multiplicação de criadouros de mosquitos vetores, os aguaceiros elevam o risco de doenças como o cólera e a leptospirose ao causarem enchentes.
Na Jornada SBIm, a apresentação do médico veterinário e epidemiologista Marcio Garcia, diretor do Departamento de Emergências em Saúde Pública da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, ajudou a lembrar que, em situações como a do Rio Grande do Sul, em que foram realizados milhares de resgates em meio a escombros, os acidentes com metais enferrujados pelas águas acabaram sendo frequentes.
Ora, ferimentos assim são brechas para a bactéria Clostridium tetani, causadora do tétano. "Em catástrofes como essa, estar com a vacinação contra essa doença em dia seria essencial", apontou Garcia.
Para se manter longe do risco de tétano, além de manter a carteira de vacinação atualizada durante a infância e a adolescência, a cada dez anos a gente deveria tomar reforço da dupla bacteriana do tipo adulto — que protege também contra a difteria — ou da tripla bacteriana do tipo adulto, que acrescenta, ainda, a proteção contra a coqueluche. Infelizmente, muitos se esquecem desse compromisso. E o clima pode pesar para quem dá essa bobeira.
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