Lúcia Helena

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Reportagem

Estudo inédito aponta risco de medicamentos comuns para pessoas idosas

A diferença entre o remédio e o veneno está na dose, o médico suíço Paracelso, criador das bases da toxicologia, já dizia isso no longínquo século XVI. Hoje, quem segue os seus passos acrescentaria que a diferença entre o remédio e o veneno está na idade do usuário também.

Mesmo que a dosagem seja aquela nas letras miúdas da bula, existem medicamentos potencialmente inapropriados para quem passou dos 60 anos, os PIMs. E diga-se: esses remédios vão ficando cada vez menos apropriados na medida em que o tempo avança para a casa dos 70, dos 80, dos 90... Repare, geralmente o indivíduo já os tomava antes de ir parar no hospital. Mas, uma vez ali por qualquer motivo, a coisa toda pode embolar com o empurrãozinho daquele comprimido que ele engolia todo santo dia.

"Esses medicamentos se associam a uma internação mais complicada", garante o geriatra Pedro Kallas Curiati, do Núcleo de Medicina Avançada do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. "As pessoas que os usam ficam mais tempo hospitalizadas, o que nunca é bom. Elas têm maior probabilidade de ir para uma unidade de terapia intensiva, sofrem mais eventos adversos, como quedas e confusão mental, e morrem mais também."

Isso ficou claro depois que o médico e seus colegas concluíram um estudo analisando o que aconteceu com 10.038 pacientes que foram internados 14.560 vezes — este número maior que o de indivíduos significa que alguns deles ficaram hospitalizados em mais de uma ocasião entre agosto de 2022 e julho de 2023.

Alerta de PIMs!

O Hospital Sírio-Libanês adquiriu uma ferramenta de inteligência artificial para dar suporte à decisão dos médicos na hora de prescrever qualquer medicação. "Trata-se de um repositório de informações sobre a segurança e os riscos de remédios, cruzando esses dados com a faixa etária e a situação clínica do paciente", explica o doutor Curiati. "Isso gera alertas em tempo real, dentro do próprio prontuário onde inserimos as prescrições."

A tal ferramenta avisa quando duas substâncias, juntas, não caem nada bem, no fenômeno desastroso da interação medicamentosa. Mas, no caso aqui, o que mais interessava aos pesquisadores eram os alertas relacionados a PIMs.

"Muitos desses remédios são necessários e provavelmente continuarão sendo receitados pelos geriatras. Mas — eis a questão — com a consciência precisamos ficar ainda mais atentos", pensa o doutor. "Outros medicamentos, porém, muitas vezes não precisariam ser usados." É a maioria dos casos de quem tomava, dia após dia, um protetor gástrico — entre os PIMs, este foi o que mais gerou alertas, segundo o estudo do Sírio.

Aliás, daqueles 10 mil e tantos pacientes, 71,8% deles estavam usando pelo menos um integrante da longa lista de PIMs. E, entre esses indivíduos que receberam prescrição de PIMs no hospital ou que já usavam esses medicamentos antes, 7,9% precisaram de UTI (unidade de terapia intensiva) contra 3,4% dos que não usavam esse tipo de medicação. A diferença de mortalidade também foi gritante: 3,4% no grupo dos PIMs contra 0,9% do outro grupo. Em relação a eventos adversos, incluindo toda sorte de incidente durante a estadia no hospital, 18% dos usuários de PIMs deram esse azar contra 10,2% do restante.

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Por ironia, a faixa etária dos usuários de PIMs é mais avançada. Eles têm, em média, 78 anos. "São justamente os indivíduos mais vulneráveis e não só porque têm mais idade, mas porque provavelmente acumulam mais doenças, recebendo a prescrição de vários remédios para tratá-las", nota o doutor Curiati.

O trabalho está prestes a sair no JAMDA, The Journal of Post-Acute and Long-Term Care Medical Association. "Ele trata de um tema importante e subestimado", acredita o seu autor.

Proteger o estômago?

O geriatra lembra que o "P" da sigla PIMs quer dizer "potencialmente". Ou seja, pode dar problema. Mas nada é pão, pão, queijo, queijo, tudo de bom ou tudo de ruim. "Todo medicamento oferece riscos e benefícios. No caso dos PIMs, essa relação pode ser desfavorável para quem está na terceira idade."

Vamos pegar o exemplo dos remédios que atuam na acidez do estômago, da classe do omeprazol, do pantoprazol e do esomeprazol. "Para quem não consegue controlar uma doença do refluxo ou para quem teve uma úlcera estomacal sem causa clara, talvez os benefícios do remédio supere os riscos", pondera o doutor Curiati. "A mesma coisa quando a pessoa precisa tomar ácido acetilsalicílico porque teve um problema cardiovascular junto com outro anti-inflamatório. Nesse caso, o risco de sangramento do estômago será alto e ela, de fato, precisará da medicação para diminuir a acidez. Mas, tirando indicações específicas assim, não há motivo real para alguém proteger o estômago." No entanto, o pensamento popular, ainda mais quando se engole um punhado de comprimidos diariamente, é que a quantidade exigiria um estômago blindado.

"Existe a suspeita de que essas drogas para reduzir a acidez levem a um risco maior de demência. As evidências disso são inconclusivas. Não dá para dizer que sim, nem que não", informa o doutor Curiati. "Se isso acontece, uma teoria para explicar é que elas atrapalhariam a absorção da B12, vitamina fundamental para o processo de memorização."

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O geriatra, porém, tem outras preocupações. Em idosos mais frágeis, os tais protetores da família do omeprazol favorecem a proliferação de bactérias não tão amigáveis por todo o trato digestório. Isso aumenta o risco de infecções intestinais, que debilitam ainda mais a saúde. "E, no caso de quem está internado, deitado o tempo inteiro, há o perigo de o conteúdo do estômago, menos ácido e cheio de bactérias, voltar e pegar o caminho errado, na direção dos pulmões, causando pneumonias", acrescenta.

Remédios para dormir

Idosos dormem menos por natureza. Com isso, no passado, foram presa fácil de ansiolíticos, como os benzodiazepínicos. Mas a ciência não tardou a tirar essa saída farmacológica do receituário dos geriatras. Afinal, além de causarem dependência em qualquer idade, os tais benzodiazepínicos aumentam a ameaça de demências, como o Alzheimer.

"A questão é que surgiu outra classe de remédios se propondo a favorecer o sono sem provocar malefícios, as famosas drogas Z, sendo o zolpidem a mais famosa delas", conta o doutor Curiati. "Mas o tempo mostrou que elas também provocam dependência, afetam a cognição e aumentam o risco de queda em idosos, não podendo ser a base do tratamento para aqueles que precisem melhorar o sono", adverte.

Antibióticos e cognição

Sim, antibióticos da classe das quinolonas — alguns bem populares, como o ciprofloxacino e o moxifloxacino — podem afetar a capacidade de raciocinar e gravar lembranças.

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"Em pacientes jovens, os efeitos tóxicos sobre a cognição são raríssimos", diz o doutor Curiati. "No entanto, em um paciente de 80 anos com os primeiríssimos sinais de Alzheimer, esse tipo de antibiótico pode ser o que estava faltando para a doença descompensar."

Por que tudo isso acontece com os idosos?

Pedro Curiati explica o conceito de reserva funcional: "Todos os sistemas do organismo tendem a funcionar com uma capacidade um pouco além daquela de que a gente precisa. Isso significa que você pode perder função de um desses sistemas antes de manifestar qualquer problema por causa disso."

Ou seja, até por volta dos 30 anos, nosso corpo trabalha com certa folga. A partir dessa idade, o declínio é lento, mas inevitável. "Até mesmo no processo envelhecimento saudável, o idoso acaba com menos reserva funcional nos mais diversos órgãos. Daí que qualquer insulto terá uma repercussão ", esclarece o médico. Lembre-se: o remédio que cura também pode nos "envenenar" um pouco e, com os anos, a margem para tolerar essa agressão se torna menor.

A reserva funcional diminuída ainda atrapalha o fígado na hora de quebrar o princípio ativo de certos medicamentos para a gente eliminá-los e os rins, no momento de filtrá-los. Resultado: o risco de toxicidade se eleva.

Mudanças na composição corporal

Existe mais esta: o corpo do idoso passa a ter mais massa gordurosa em relação à massa magra, que possui mais água em sua composição. Isso também influencia. "Alguns remédios são solúveis em gordura e a tendência, então, será que se acumulem", explica o geriatra. "Já aquelas drogas solúveis em água terão menos líquido disponível para serem diluídas pelos tecidos. Portanto, acabarão com um pico mais alto."

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Ambas as situações — o acúmulo do medicamento no corpo e o pico mais alto — poderão levar a efeitos tóxicos. Curiati afirma que o objetivo do estudo é sensibilizar os médicos sobre essa situação. Mas, não menos importante, serve par reforçar um antigo pedido para os mais velhos: não sair engolindo medicamento à toa, por conta própria, mesmo que já tenha se dado bem com ele no passado. Ora, tudo pode mudar com o tempo.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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