Nanotecnologia para aproveitar o anticancerígeno das frutas vermelhas
A cor dá a impressão de promessa: a de que a taça de frutas vermelhas oferece uma porção de saúde. Afinal, o que tinge amoras, morangos, framboesas, cerejas, mirtilos e companhia são moléculas de antocianinas. Badaladíssimas pela ciência. Valeria até mesmo comer uma ameixa, uma goiaba, uma fatia de melancia. Quem sabe, em vez dessas pedidas de sobremesa, uma salada de repolho roxo.
Na horta e no pomar, a paleta das antocianinas é a dos tons de vermelho, do rosa, dos azulados e dos arroxeados. E ela, de fato, combina com um corpo mais saudável. O efeito antioxidante é belíssimo, ajudando a preservar as nossas células. Essas moléculas têm, de quebra, uma baita ação anti-inflamatória. E — o que chama muito a atenção — as antocianinas são anticancerígenas.
Não à toa, a nutricionista paranaense Thiécla Katiane Osvaldt Rosales anda olho espichado para elas há algum tempo. Se hoje ela faz parte do FoRC (Centro de Pesquisas em Alimentos), na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP (Universidade de São Paulo), no fundo ainda carrega a lembrança dos cinco anos que cuidou de pacientes em um hospital. Portanto, sabe bem a diferença que as antocianinas fariam para aqueles que combatem um tumor maligno. "Elas nunca substituiriam a quimioterapia, claro. Mas poderiam ajudar no tratamento", acredita.
Na prática, a porção não é tão generosa
A questão é que, embora tenha suas qualidades, a tal taça de frutas vermelhas acaba não entregando tanta antocianina assim — ao menos, para quem enfrenta um câncer ou até uma doença inflamatória crônica.
Sinto decepcionar: no processo digestivo, apenas 1% da substância é absorvida. O restante vai para o beleléu. E a ideia de criar suplementos, até agora, é um fiasco. Tudo porque as antocianinas são tremendamente instáveis.
No alimento, essas moléculas estão protegidas por natureza. Mas, fora dele, para serem usadas como suplemento para alguém com câncer, por exemplo, é outra história. Esses bioativos não suportam um raio de luz, nem o oxigênio do ar, muito menos uma diferença de pH no ambiente. "Tudo isso pode alterar sua estrutura e, aí, os benefícios diminuem", explica a doutora Thiécla. "Mas o problema principal das antocianinas é durante a digestão."
Elas se dão bem com a acidez do estômago. Só que a chegada no intestino, com seu pH mais básico, costuma ser desastrosa. "A molécula vai perdendo a integridade, o que reduz a sua função", diz a nutricionista.
As enzimas dos sucos digestivos despejados nesse órgão tampouco ajudam. E a microbiota intestinal completa o serviço, porque também devora os bioativos das frutas vermelhas. Bem cá entre nós, isso não é de todo ruim. "Muitas das ações positivas que observamos em pessoas com o hábito de comer alimentos cheios de antocianinas não vêm dessas substâncias em si, mas dos metabólitos que se formam depois que as bactérias as usam", ensina a doutora.
Porém, a nutricionista e seus colegas queriam mais — mais, ao pé da letra. "Queríamos que fosse absorvida uma quantidade maior de antocianinas intactas", resume. E foi essa proeza que se viu em um estudo, financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Desenvolvimento Tecnológico) e pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Paulo), que ela realizou ao lado do professor João Paulo Fabi, também da USP. O bioquímico, no caso, já tinha a ideia de se enveredar pelo mundo da nanotecnologia.
Cápsulas de milionésimos de milímetro
A nanotecnologia é algo relativamente novo no campo da nutrição. "Ela é muito usada em outras situações, como para levar um remédio diretamente a um órgão", exemplifica a doutora Thiécla. O professor Fabi, por sua vez, já investigava há muitos anos a pectina, um polissacarídeo, ou melhor, uma fibra muito encontrada na casca de diversas frutas.
Os dois cientistas, então, se perguntaram: será que a pectina não poderia ser o composto de uma cápsula que protegeria a antocianina? Fazia sentido tentar. "Isso porque a pectina é muito resistente e passa pelo trato gastrointestinal sem ser degradada", explica a doutora Thiécla.
Dentro da cápsula, é como se antocianina pegasse carona em um carro blindado. "No caso, um veículo feito de pectina extraída da casca de frutas cítricas e que tem apenas uns 190 nanômetros", conta a nutricionista. "Ou seja, cerca de 190 milionésimos de milímetro. A gente nem consegue visualizá-lo sem um microscópio muito potente, capaz de aumentar a imagem entre 100 mil e 160 mil vezes."
Será que não poderiam ter colocado a antocianina em uma cápsula que fosse um pouco maior? "Até poderíamos ter usado microcápsulas", responde a doutora Thiécla, pensando então em milésimos de milímetro no lugar de milionésimos. "Mas gostaríamos que houvesse o máximo possível de absorção pela parede intestinal e, quanto menor o tamanho, maior a probabilidade de isso acontecer."
É uma boa mesmo que mais antocionina passe para a circulação, carregada por uma nanocápsula. Isso porque — mais esta! —, assim como o intestino, o sangue tem um pH básico. Portanto, uma vez na corrente sanguínea, sabe-se lá quanto aquele 1% de antocianina dura e se tem tempo suficiente para agir.
E depois do intestino?
Os cientistas já entraram com o pedido de patente da nova tecnologia, que combina a pectina e uma proteína para formar a nanocápsula protetora. E, agora, acabam de publicar um artigo que procura tirar uma dúvida que martelava na cabeça de todos: e depois, quando tudo cai no sangue? Seria o fim? As moléculas de antocianina ficariam totalmente vulneráveis e terminariam destruídas, como se morressem na praia? Ou será que isso não aconteceria com todas?
Afinal de contas, em um primeiro momento, os pesquisadores da USP só notaram que as antocianinas, quando estavam protegidas, chegavam mais intactas na porção final do intestino, sendo liberadas gradualmente na medida em que a microbiota ia fermentando a cápsula.
"Observamos isso em equipamentos que simulavam a digestão humana", esclarece a doutora Thiécla. Eles também viram que uma parte foi absorvida livre e outra, ainda dentro das nanocápsulas."Pelo tamanho delas, as células do corpo poderiam perfeitamente absorvê-las", conta a doutora Thiécla. "Mas será que aconteceria isso mesmo? Tínhamos muitas questões."
Durante o seu pós-doutorado, porém, foi feita uma parceria com o IPEN (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares). "Extraímos as antocianinas de amoras e marcamos suas moléculas com um átomo radioativo, antes de colocar parte delas em nanocápsulas", conta.
Os pesquisadores, então, dividiram camundongos em dois grupos. Um deles consumiu a antocianina marcada com a substância radioativa, mas sem a proteção das nanocápsulas. O outro ingeriu a antocianina encapsulada.
"Na sequência, colocamos os animais dentro de um tomógrafo e, graças à radiação, era possível rastrear na imagem o caminho das antocianinas pelo organismo", descreve a doutora. "Aquelas que estavam dentro das nanocápsulas foram absorvidas em uma quantidade bem maior que as moléculas livres ou que as antocianinas dentro do alimento." E o melhor: as nanocápsulas entraram nos mais diversos tecidos, inclusive no do esqueleto, onde as antocianinas ajudam na renovação óssea.
Nos próximos meses, os pesquisadores da USP vão se dedicar a uma nova etapa, induzindo alguns tipos de câncer em animais para ver se a suplementação com as nanocápsulas recheadas de antocianinas teria algum efeito. A esperança é que sim — notícia que será, para quem tem a doença e precisa de antocianina extra, tão saborosa quanto uma taça de frutas.
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