Um anticoagulante comum pode dar origem a remédio para barrar o câncer
No citoplasma, aquele gel que recheia cada uma de nossas células, existe uma proteína que geralmente faz por merecer seu apelido: "guardiã do genoma". Isso porque, durante a divisão celular, a p53 — este é o seu nome legítimo — checa se a longa sequência do DNA foi copiada direitinho, letra por letra. Ora, qualquer alteração poderá resultar em uma cópia que funcionará de um jeito diferente, sem prestar seus bons serviços ao corpo. Aliás, eventualmente a nova célula carregando a informação genética equivocada se tornará doente, maligna mesmo.
Por isso, quando encontra um erro na duplicação do DNA, a tal proteína guardiã manda parar tudo, impedindo que a divisão celular prossiga com o código genético alterado. Muitas vezes, o problema é reparado. E, se não tem conserto, a p53 apela para uma medida drástica: induz a apoptose, isto é, o suicídio da célula "diferentona", antes que siga adiante e que cause estragos.
No passado, achava-se que o câncer surgiria por causa de uma brecha, aproveitando-se de uma bobeira da p53, quando ela não realizava seu trabalho de fiscalização como deveria. Há quase vinte anos, porém, cientistas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) publicaram um artigo descrevendo um fenômeno estarrecedor: a nossa boa guardiã pode mudar de personalidade e, então, além de não nos proteger, favorecer o aparecimento de um tumor maligno.
"É como naquela história do médico e do monstro", compara o biofísico Jerson Lima Silva, líder da investigação e professor da UFRJ, referindo-se a um clássico da literatura, escrito pelo escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), em que um médico bondoso, o doutor Jekyll, cria uma poção que elimina seus limites éticos e morais, transformando-o no odiável senhor Hyde.
Não, por enquanto ninguém conhece a "poção" que leva a p53 a se transformar em vilã e estar por trás de mais de metade dos cânceres do planeta, o que é de fato uma monstruosidade. Mas, agora, os cientistas da UFRJ — eles, de novo! — acabam de descobrir um meio, ou melhor, um remédio para conter o seu lado nefasto: a heparina, um anticoagulante do arco-da-velha, usado desde 1935, quando, então, a substância foi extraída do fígado de cães para salvar o coração humano ameaçado por trombos.
Antes de mais nada: não façam isso!
O professor Jerson Lima Silva, que é também presidente da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), explica que o anticoagulante em questão, a heparina, provavelmente não terá muito efeito se alguém arriscar tratar um câncer com ele. "Primeiro, porque fizemos experiências com células de tumores de mama, de fígado e de cérebro em tubos de ensaio, o que é bem diferente de testar uma droga no organismo humano", comenta.
Além disso, vale notar que uma dosagem relativamente pequena da heparina consegue entrar nas células para agir como o esperado. É dentro delas que a p53 que sofreu mutação e mudou de lado deixa de ficar em estado líquido. Vira um gel e, depois, um minúsculo sólido. Pior, age como uma velha casamenteira, juntando outras proteínas que estão por ali. Enroscadas umas nas outras, elas formam minúsculos aglomerados que atrapalham todo o funcionamento celular e dão origem ao pior dos cenários.
Para impedir a célula cancerosa
"O câncer é uma doença extremamente complexa. Não podemos dizer que esse seja o único mecanismo por trás", esclarece o professor Jerson Lima Silva. "Mas é interessante notar que esses aglomerados são encontrados em uma quantidade muito maior justamente naqueles tumores bastante agressivos e difíceis de tratar, como o câncer de mama triplo negativo", aponta. A perspectiva é que, evitando os tais aglomerados no interior da célula, seja possível encontrar saídas especialmente para casos complicados assim.
Os resultados do estudo com a heparina, apoiado pela Faperj e pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), saíram no periódico científico Communications Chemistry, do grupo Nature. Para o professor Jerson Lima, o fato de ser um anticoagulante bem conhecido é um facilitador. Mas a esperança é que os cientistas desenvolvam moléculas menores capazes de agir como a heparina, mas que entrem nas células com maior desenvoltura para prevenir — "sim, prevenir, por que não?", pensa o biofísico — ou até mesmo reverter esses péssimos casamentos da p53 mutada com outras proteínas, que geram os tais aglomerados capazes de favorecer o câncer.
O medicamento, no caso, seria como aquele convidado da cerimônia que ergue a mão quando perguntam se alguém teria algo contra aquela união. Afinal, um casamento desses ninguém quer.
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