Lúcia Helena

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Reportagem

Prevenção do câncer: o que pessoas lésbicas, gays e trans precisam saber

O risco de ter câncer, como o de toda doença, reflete em parte o nosso dia a dia e como nos cuidamos ou somos cuidados. Assim, sempre irão existir tumores mais frequentes em determinados grupos do que em outros, não só por conta de características físicas e biológicas, mas também por condições sociais e comportamentos. Por que seria diferente com a população LGBTQIAPN+?

Bem, penso de cara em uma diferença que já entrega um inadmissível preconceito: não sabemos exatamente a prevalência de câncer entre essa gente. "No Brasil, os serviços de saúde não coletam informação sobre orientação sexual e identidade de gênero. Só registram o sexo atribuído ao nascimento", justifica o baiano Ricardo Sant'Ana. "A ausência de dados dificulta a criação de políticas públicas voltadas a essas pessoas para melhorar a prevenção e o acesso ao tratamento", diz ele.

Eu o encontrei no recente congresso da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), da qual é membro do Comitê de Diversidade. Enfermeiro, Ricardo Sant'Ana ainda era estagiário quando foi alocado em um serviço de câncer. Um dia, uma mulher lhe perguntou se determinado remédio impactaria na sua vida sexual. Na época, ficou mudo, sem resposta.

Foi assim que se inspirou a estudar a sexualidade dos pacientes oncológicos, tema ao qual dedicou seu mestrado na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e o seu atual doutorado na USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, ambas no interior paulista. Acaba de voltar de uma temporada na McGill University, no Canadá, investigando como a população LGBTQIAPN+ latina vê o diagnóstico e o tratamento do câncer. Justamente porque, lá fora, existe uma estimativa mais precisa da incidência de tumores nessa população. "No nosso país, o que percebemos é que os casos chegam mais avançados", lamenta Sant'Ana.

Claro que cada letra de LGBTQIAPN+ aponta um grupo que, em relação ao câncer, pode apresentar riscos diferentes. Aqui, vamos nos concentrar em três pedacinhos da sigla— o "L", de lésbicas; o "G", de gays e o "T", de transgêneros. O que essas pessoas precisam saber para afastar a ameaça de um tumor maligno ou flagrá-lo cedo, quando as chances de cura são maiores?

Lésbicas: obesidade e câncer

Segundo Ricardo Sant'Ana, estudos realizados em outros países concordam em um ponto: a prevalência de obesidade é maior nas mulheres lésbicas do que naquelas que são hétero ou até mesmo bissexuais. Óbvio que não é a orientação sexual de ninguém que infla as células de gordura.

"A hipótese é de que as lésbicas tenham comportamentos que as levam a engordar porque o acúmulo de gordura corporal ofereceria uma sensação de proteção contra a violência, principalmente vinda de homens", conta o pesquisador. Inclua, aí, cantadas de mau gosto — estas, não importa se o alvo são lésbicas ou não, parecem ser mais difíceis de extirpar do que qualquer tumor.

O fato, que não tem nada a ver com pressão estética, é que a obesidade está relacionada a pelo menos treze tipos de câncer. "Entre eles, destaca-se o de mama", informa Sant'Ana. Mas, em outubros tão rosas, a obesidade como fator de risco passa batido. "Aliás, tampouco as lésbicas se sentem acolhidas nas campanhas", opina o enfermeiro.

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Vale lembrar que tumores de ovário e de endométrio também ocorrem com maior frequência em mulheres acima do peso — que amem outras mulheres ou não.

Gays: o problema da chuca feita do jeito errado

Os casos de câncer de ânus ou mesmo de reto— a porção final do intestino — costumam ser mais frequentes em pessoas que praticam sexo anal. E, aqui, cabe um esclarecimento: não importa se é mulher ou homem.

A principal causa dos tumores de ânus é o papilomavírus humano, o HPV, que — como em outras infecções sexualmente transmissíveis — encontra brecha em microscópicas fissuras resultantes da fricção do ato sexual. Mas, de acordo com Ricardo Sant'Ana, há um cuidado sobre o qual quase ninguém dá orientações no consultório. Sim, precisamos falar da chuca.

"Realizada do jeito errado por quem é passivo na relação, a higiene do reto antes do sexo anal pode aumentar o risco de lesões", comenta o pesquisador. Não raro, a pessoa lança muita água com a ajuda de uma ducha poderosa. "Começa por aí: o Ph da água é diferente daquele da mucosa. Conforme o volume e a duração desse jato, ele poderá arrasar a microbiota", explica Sant'Ana.

A população de microorganismos moradores dessa região até se refaz, mas precisa de um tempo que uma vida sexual agitada às vezes não dá. "Sem eles, em tese as células ficariam mais sujeitas a modificações que favoreceriam o aparecimento de cópias malignas", conta o pesquisador.

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Por ironia, ao mesmo tempo em que a higiene incorreta deixa a mucosa fragilizada, se a água sobe demais pela força da ducha, acontece justamente o que a pessoa gostaria de evitar com ao fazer a chuca: as fezes ficam diluídas, prontas para esguichar na hora agá.

"Existem dispositivos apropriados para essa limpeza, que aplicam uma quantidade de água pequena em uma profundidade que, idealmente, não deve ultrapassar 5 ou 6 centímetros", ensina Sant'Ana. Importante: a temperatura dessa lavagem precisar ser morna. Nada de aquecer demais a água, nem de dar um gelo no ânus! Cuidados assim evitam constrangimentos e, acima de tudo, reduzem o risco de um câncer.

Vacina contra o HPV: uma ótima pedida

O melhor seria se todos se imunizassem contra o HPV. Neste ano, a vacina passou a ser disponibilizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde) para pessoas de 15 a 45 anos que usam PrEP (profilaxia pré-exposição ao HIV). É um avanço e tanto.

Afinal, quem fica protegido contra o vírus da Aids graças aos medicamentos que compõem a PrEP termina se liberando da camisinha, mas se esquecendo que continua à mercê do HPV — por trás não apenas dos tumores de ânus, mas de vulva, vagina, pênis, boca e garganta. "Infelizmente, porém, a cobertura vacinal na população LGBTQIAPN+ está muito baixa", nota Ricardo Sant'Ana.

Pessoas trans: a falta de exames essenciais

A maioria das mulheres trans — mesmo aquelas que fizeram cirurgia de afirmação de gênero — continua com próstata. Esse é um assunto extremamente sensível para elas, o que é fácil compreender. "Mas os exames para rastrear tumores nessa glândula deveriam ser feitos a partir dos 50 anos", observa Ricardo Sant'Ana.

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É bem verdade que a terapia hormonal aplicada nas mulheres trans age como se calasse a próstata, o que diminui a probabilidade de ela dar problemas. Estudos apontam que a prevalência de câncer nesse órgão em mulheres trans fica em torno de 0,6%, baixinha, cerca de quatro vezes menor do que aquela registrada em homens cis. No entanto, principalmente quem tem histórico da doença na família deve seguir com a rotina de exames para flagrar algo de errado. Novembros não são só azuis.

E, sim, os "outubros" são para elas também. Ao usarem hormônios femininos, as mulheres trans têm um risco menor, mas nem tanto, de desenvolver câncer mamário em relação às mulheres cis. A partir dos 40 anos, a mamografia anual vale para todas.

Por falar nisso, os homens trans — inclusive aqueles que passaram pela mastectomia — continuam com risco de desenvolver câncer de mama também, embora ele seja mínimo, segundo dados da Sociedade Brasileira de Mastologia. É que, mesmo operados, pode sobrar um tico de tecido mamário, às vezes até se prolongando na direção das axilas. Por esse motivo, a recomendação é para que façam o autoexame e, se possível, especialmente se há casos desse tumor na família, pesquisem alteracões genéticas capazes de favorecer a doença, antes de "relaxarem" em relação ao assunto.

"Outro desafio é acolher os homens trans para que não evitem exames como o de Papanicolaou", lembra Ricardo Sant'Ana. O câncer cervical, neles, lamentavelmente costuma ser descoberto tarde demais — e, no caso, o risco não é menor do que o de mulheres cis.

Onde mora o maior perigo

A ideia de criar um ambiente acolhedor e inclusivo nos serviços de saúde é linda. Caindo na vida real, porém, a população LGBTQIAPN+ — e, ouso imaginar, especialmente quem é transgênero — pode encarar um brutamontes ou uma senhorita cheia de preconceito sob o jaleco, tanto em hospitais públicos quanto em privados.

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A saída passaria por criar serviços especializados — "ou, ao menos, por evitar nomes como 'hospital da mulher', que já afastam homens trans", exemplifica Ricardo Sant'Ana. "E, antes de qualquer coisa, é preciso formar profissionais de saúde, como proponho no meu doutorado, que valida um curso para desenvolver as competências necessárias para cuidar dessas pessoas."

Até isso se tornar realidade, para quem é LGBTQIAPN+ ir a uma consulta pode exigir uma dose de coragem. Mas é preciso romper a barreira e cuidar desse corpo, até para continuar resistindo e lutando por um mundo mais saudável para todos, ao pé de todas as letras.

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