Lúcia Helena

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Reportagem

Cigarro eletrônico: um spray bucal de nicotina ajudaria a vencer o vício?

Ao redor do mundo, uma boa parte de 82 milhões de jovens acorda na maior fissura. Precisa acender — opa! — ligar um cigarro eletrônico, mal saindo da cama. O corpo desperta se ressentindo das horas em que, adormecido, ficou longe da nicotina.

Esses, aliás, são dados de 2021. Lamento, mas a coisa deve estar bem pior agora. Ora, já naquela época a previsão era de que a dependência de vapes crescesse, por baixo, 25% até 2029. Isto é, se a inominável (pensando em nomes publicáveis) indústria do tabaco não investisse nem sequer um centavo para que essa forma de tabagismo prosperasse.

Parênteses: segundo um estudo divulgado ontem mesmo, dia 25, pelo Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), quem traga diariamente esse cigarro que não faz o gogó arder, nem fede, cheirando a perfume barato, acumula no organismo níveis de nicotina até seis vezes maiores que os de quem fuma vinte cigarros convencionais e catinguentos por dia. Ou seja, níveis equivalentes aos de seis maços. É..., o sal de nicotina desenvolvido pela indústria do tabaco não brinca em serviço. E a nicotina é a substância sem-vergonha por trás do vício.

Por sua vez, o Addiction Journal publicou uma pesquisa sobre um spray bucal de nicotina para tratar essa nova dependência, desenvolvido pela empresa americana Kenvue, antiga divisão da Johnson & Johnson. Os resultados foram bastante promissores, lembrando que sete ou oito em cada dez jovens que entram na roubada do cigarro eletrônico tentam sair dela sozinhos — e simplesmente não conseguem.

Questão de velocidade

Existe um detalhe de farmacocinética nessa história — perdoem o palavrão! Farmacocinética é como o seu organismo lida com o raio da nicotina, por exemplo. Ou seja, o tempo que leva para absorver a molécula, como ela se espalha por seus tecidos, às vezes se transformando ou aprontando pelo caminho e, finalmente, como é eliminada. Aliás, no caso específico, a nicotina vai embora pelo xixi, mas não sem ameaçar a bexiga, sendo a maior causa de tumores nesse órgão.

Voltando ao desafio, ele foi bem explicado pelo diretor médico da Kenvue, Rajesh Mishra: "Temos produtos com nicotina para ajudar quem deseja largar o tabagismo, como gomas de mascar e adesivos. O problema é que a nicotina deles é absorvida mais lentamente, enquanto a do cigarro eletrônico leva segundos para agir. E imagine: o indivíduo que já acorda pensando em vape talvez sinta tanta urgência que não consiga esperar o tempo de uma goma fazer efeito. Daí a ideia de desenvolver um spray que pudesse competir com o impulso de ligar um cigarro eletrônico, com uma absorção muito rápida pela mucosa da boca."

Para a gente ter noção, no primeiro dia de tratamento um adesivo de nicotina pode demorar de oito a dez horas até a concentração da substância no plasma sanguíneo ser suficiente para reduzir os sintomas de abstinência. Tudo bem que, depois, se esse adesivo é trocado diariamente, os níveis mais altos ficam estabilizados. Gomas e pastilhas são mais rápidas. Elas levam de 5 a 15 minutos para aumentar o bastante a nicotina no sangue.

Já o spray faz a concentração da substância subir o suficiente depois de ínfimos 30 segundos (ok, a primeira vez pode levar um tempo que vai desse meio minuto a uma hora). É o que mostra a pesquisa recém-publicada.

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Como foi o estudo

Realizado no Hammersmith Medicines Research, em Londres, na Inglaterra, o estudo reuniu 216 fumantes de cigarro eletrônico — um quarto, mulheres —, com idade média de 27 anos. Todos tinham se tornado dependentes há cerca de dois anos e, diga-se, costumavam ligar o dispositivo para dar suas baforadas na primeira meia hora após acordarem de manhã.

Essa turma foi dividida em dois grupos. Um deles, sem saber, recebeu um spray de placebo, um remédio de mentirinha. O outro ganhou o spray verdadeiro, capaz de entregar 1 miligrama de nicotina por dose. "Aliás, esse foi um dos desafios: oferecer uma quantidade exata, nem a mais, nem a menos", explica o doutor Rajesh Mishra. "Ter essa segurança era uma premissa importante."

Aproveito e pergunto se um spray de nicotina não aumentaria o risco de tumores de boca. Afinal, o cigarro também está por trás dessa doença. "Nenhum produto para substituir a nicotina enquanto a pessoa tenta abandonar o tabagismo é para ser usado por tempo indeterminado", afirma o médico. "Aplicado apenas durante um tratamento, o spray bucal é seguro, sim", tranquiliza.

Ele conta que, bem cedo, os participantes do estudo fizeram testes validados para mensurar a urgência para fumar. Os pesquisadores avaliaram a redução desse sintoma logo após o spray de nicotina. Ela foi notória e se estendeu por até duas horas. "Durante o dia, todos puderam repetir a dose quando voltavam a sentir vontade de ligar o cigarro eletrônico", diz Rajesh Mishra. A última delas foi aplicada treze horas após a primeira. A quantidade de nicotina no plasma se manteve em 6,2 ng/ml (nanogramas por mililitro), menor do que a média após alguém tragar o cigarro eletrônico, que é de 9,9 ng/ml.

Será que vai funcionar?

Pedi para o pneumologista Gustavo Faibischew Prado, coordenador da Comissão de Câncer da SBPT (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia), comentar a pesquisa. "Ela ainda é preliminar, sem robustez para a gente recomendar o spray bucal como forma de tratamento para a dependência de vape", ele opina. "O que não quer dizer que deixe de ser algo promissor. Afinal, ele mostrou que pode ser eficaz. Mas precisamos, agora, de estudos maiores para ver no que dá."

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Segundo o médico, seria necessário envolver um número bem maior de fumantes, como em outros trabalhos para investigar um tratamento de dependência. "Geralmente, eles reúnem cerca de 1 mil pessoas em cada braço ou grupo", descreve. "E, em vez de um deles usar placebo, os pesquisadores usam combinações de tratamentos diferentes. No caso, por exemplo, poderiam comparar a dupla de spray e goma de mascar de nicotina em um deles e o spray junto de mais um remédio em outro."

Isso porque os tratamentos que mais dão certo combinam estratégias farmacológicas. Elas servem de apoio ao acompanhamento especializado, que é a base de tudo, com profissionais aplicando técnicas, como entrevistas motivacionais e terapia cognitivo-comportamental. "Mas os remédios, sem dúvida, aumentam a chance de o cara parar de fumar, mais do que duplicando a probabilidade de sucesso", nota o pneumologista.

Por falar em sucesso, outro ponto levantado por ele a respeito do estudo do spray bucal é que foi medida a redução da fissura em um único dia. "O ideal seria a gente saber se o spray de fato ajudaria quem quer largar o cigarro eletrônico", acredita. "Pesquisas com esse objetivo costumam durar 52 semanas. Em geral, o tratamento é feito nas primeiras dez ou doze delas. O restante do tempo é para registrar as recaídas. Que, infelizmente, são comuns, especialmente nos primeiros seis meses."

Pontos de atenção

Os primeiros sprays de nicotina eram nasais e surgiram ainda na década de 1990. Mas perderam espaço para gomas, pastilhas e adesivos porque irritavam o nariz, causavam congestão e ainda deixavam os olhos lacrimejando. "Além disso, há certa preocupação com a substituição da nicotina. Já parou para pensar por que esses tratamentos não viciam?", dispara o doutor Gustavo Prado. "Porque o tempo de absorção da nicotina é mais lento. Com o cigarro, ela sobe muito depressa, mas cai ligeiro. Esses picos e vales de uma ação muito rápida e, ao mesmo tempo, efêmera, é que causam a dependência."

O spray bucal — que já é comercializado nos Estados Unidos — provou que é rápido e não tão efêmero. "Mesmo assim, os cientistas devem ficar de olho no risco de ele perpetuar a necessidade de nicotina", pensa o doutor Gustavo Prado. "Tomara que dê certo, porque precisamos de novos tratamentos. O tabagismo foi a primeira pandemia do século 20 e ela segue firme, acometendo 1 bilhão de pessoas e causando 8 milhões de mortes por ano ao redor do mundo."

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A situação estava até melhorando. Nos últimos quarenta anos, a proporção de fumantes vinha caindo em todos os cantos. E o Brasil deu show, apresentando a maior queda no número de fumantes — ela foi de 35%. O cigarro eletrônico, porém, chega quando a vitória parecia quase garantida para virar o jogo.

Estudos que o comparam com o tabagismo tradicional não enxergam diferenças no risco de doenças do coração, AVC, câncer, asma e outros males. O projeto de lei número 5008, que se propõe a regulamentar a comercialização dessa droga pesada, usa a desculpa dos impostos. Que, na hipótese mais ingênua, escoarão pelo ralo nos serviços de saúde responsáveis por acolher uma geração de doentes. Falar que estão preocupados com a nossa saúde — e não com os interesses da indústria do tabaco — é olhar para esse absurdo através uma cortina de fumaça. Fumaça de vape.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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