Brasileiro cria material com antibiótico para próteses que evitam infecções
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Quem precisa ou quem já precisou de uma prótese ortopédica certamente ouviu que a cirurgia para implantá-la não é bolinho. Nunca é tão pequena: ora, não há como colocar uma peça criada em laboratório no lugar da bacia ou da cabeça do fêmur através de um corte tímido. A recuperação exige uma baita resiliência. Para completar, há um risco nada desprezível de infecção. E nem queira saber como é uma infecção ali, no osso!
"O osso é mesmo duro de roer", me diz o infectologista Felipe Francisco Tuon, professor e pesquisador do programa de pós-graduação em ciência da saúde da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). O médico quer dizer "duro" ao pé da letra: 70% de um osso é puro mineral. Logo, o sangue não passa na maior tranquilidade.
"Se a área infecciona, isso atrapalha até mesmo a chegada de antibióticos que seriam trazidos pela circulação. Daí que o tratamento é longo. A bactéria gruda e não sai mais de lá", ele explica.
Gruda mesmo. Percebe que o ambiente é hostil, até pela falta de um aporte sanguíneo farto. Então, ela se agarra no tecido mineral e forma uma espécie de camada, o biofilme. Fica sob esse manto protetor e para de se multiplicar. Quietinha, ali embaixo desse biofilme, as células de defesa não conseguem matá-la. Nem os antibióticos penetram. Por esse motivo é uma infecção de tratamento dificílimo. E ela, infelizmente, acomete de 2% a 20% dos pacientes que colocam próteses.
O professor me conta que essa proporção já foi pior no passado. Ainda bem, as condições cirúrgicas e as próprias próteses avançaram, diminuindo esse risco. Mas, apesar de a proporção ter caído, o número de casos de infecção deu um salto. Isso porque, em compensação, hoje tem muito mais gente precisando operar para colocar uma prótese no lugar de um osso. O envelhecimento da população justifica em parte esse aumento. E entra na conta a incidência crescente de acidentes de trânsito, ampliando a demanda.
"É preocupante. A infecção se dissemina pela musculatura ao redor. O espaço entre o músculo e o osso costuma ficar preenchido de pus. Isso tudo dispara um processo degenerativo progressivo e onde a bactéria está grudada pode acontecer até uma necrose", descreve o professor Tuon, que não conseguia tirar esse quadro da cabeça.
É que o infectologista se dedica a um nicho muito particular de pesquisa: a busca de materiais para evitar ou ajudar no tratamento de infecções. E confessa que, entre tantas tecnologias, acabou se apaixonando pela impressão 3D. Há três anos, pensou: será que não poderia imprimir próteses capazes de evitar toda essa situação?
Convenceu, então, ortopedistas e neurocirurgiões a embarcarem nesse sonho, ou melhor, na pesquisa publicada recentemente no periódico Brazilian Archives of Biology and Technology. Ela resultou em termoplásticos contendo antibióticos que a impressora transformou em próteses sob medida para os 15 pacientes que as usaram no início.
Os brasileiros são os primeiros do mundo a desenvolvê-los. O potencial da novidade fez com que o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) aprovasse um financiamento de 3 milhões de reais para estruturar um centro de impressão 3D na PUCPR. A ideia é que ele forneça sem custo, já a partir deste ano, as próteses com antibiótico aos pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde).
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Para produzir o plástico com antibiótico
São duas técnicas. Em uma delas, o primeiro passo foi selecionar antibióticos resistentes a altas temperaturas. Isso porque, no início da produção, o material passa por uma máquina extrusora que, depois de triturar o plástico, alcança 250 graus Celsius na hora de misturá-lo ao remédio e produzir filamentos. São esses fios que vão servir de material na impressora 3D. A sacada foi patenteada.
Por sorte, os antibióticos que aguentam todo esse calorão são os mais utilizados no pós-operatório dos pacientes, por via oral ou na veia. Isso porque são capazes de matar as bactérias mais frequentes. "Daí que as próteses feitas com essa tecnologia deverão ser usadas na maioria dos casos, quem sabe antes de qualquer problema, só para prevenir infecções", prevê Tuon.
Mas existem pacientes, já com o diagnóstico de infecção após o implante de uma prótese, em que a equipe médica encontra bactérias bem mais difíceis de lidar. Elas só podem ser combatidas com outros antibióticos, aqueles que não se dão bem com altas temperaturas.
A saída encontrada pelo professor Tuon foi literalmente abrir espaço no polímero, a molécula grandalhona de que são feitos os plásticos. Se a gente olha de perto, um polímero é, na realidade, uma cadeia de moléculas menores. "Com soluções solventes, conseguimos inchar essa cadeia, quebrando algumas partes", explica o pesquisador.
O plástico inchou pra valer. Até porque os espaços entre as moléculas foi preenchido por — advinhe! — antibiótico. E eis o pulo do gato: depois, os cientistas tiraram o produto que fez o polímero se arreganhar. A molécula voltou a se fechar, desinchou. Mas, nessa altura, o antibiótico já estava lá dentro. É com essa alternativa de material que serão feitas as próteses para tratar infecções resistentes.
Troca de prótese
Não tem jeito e, toda vez que se nota uma infecção no osso, a pessoa precisa retirar a prótese que tinha sido implantada. Em uma comparação, é como se fosse um dente infeccionado: não adianta só tomar antibiótico, sem ir ao dentista para, com a ajuda do motorzinho, limpar a área, arrancando as bactérias grudadas e cobertas pelo biofilme.
"O cirurgião tira a prótese, lava tudo, dá antibiótico e, depois, precisa colocar outra prótese no lugar", conta o professor. Prótese que, agora, poderá vir com a medicação impregnada como reforço.
Efeito prolongado
Os pesquisadores fizeram vários testes e viram que o antibiótico persiste em uma concentração suficiente por 30 dias — é o período em que, com toda segurança, ele continua agindo. "Entre os primeiros 15 pacientes que acompanhamos ao longo de um ano, um deles precisou tirar o implante, feito na calota craniana, depois de três meses. E, então, notamos que já não havia remédio ali", relembra o professor Tuon.
O tempo de um mês, porém — com o antibiótico agindo bem no local da crise e com maiores chances de penetrar onde é necessário —, já está de bom tamanho, na opinião do infectologista.
Os pacientes, diga-se, continuarão usando antibióticos orais ou endovenosos. A prótese liberando o medicamento nas proximidades do local infectado é um recurso a mais. Ela poderá ser implantada na primeira cirurgia — quando os médicos quiserem prevenir quadros infecciosos — ou na operação para limpar uma infecção já instalada.
Bom explicar que o material com antibiótico não tem a resistência do titânio, metal usado nas próteses convencionais. "Por isso, embora segura para ser usada pelo resto da vida, a prótese de plástico muitas vezes deve ser trocada", esclarece o professor Tuon.
Se é de calota craniana, por exemplo, a prótese feita na impressora 3D pode ficar na cabeça para sempre. Mas, quando substitui uma bacia ou um osso da perna, talvez não seja forte o suficiente para o dia a dia normal — e uma nova cirurgia é marcada quando a ameaça de infecção se torna página virada. "Claro que, se o paciente for um idoso que não colocará tanta sobrecarga, talvez valerá a pena continuar com a prótese feita na impressora em vez de ser operado de novo."
Próximos passos
O objetivo, agora, é ampliar o centro da PUCPR para dar conta da produção em maior escala e envolver o maior número possível de hospitais do SUS, a fim de acumular muitos casos.
Não menos importante é atrair empresas que queiram produzir próteses com o material para os hospitais privados. "Se isso acontecer, será interessante até para os convênios, porque o custo é dez vezes mais barato que o do que é feito atualmente", opina o professor Tuon,
E o que é feito atualmente? — pergunto. "Os médicos dão uma ducha de antibiótico na prótese convencional", responde o infectologista. A experiência mostra que, com o banho de remédio, o efeito dura pouco e, portanto, é menos seguro e eficaz.
A cabeça do pesquisador, porém, já está lá longe. Ele revela que, para o próximo ano, quer desenvolver uma prótese com antibiótico que seja quase tão resistente quanto a de titânio. Se der certo, acabará com a necessidade de o paciente se deitar mais uma vez na mesa de operação para uma troca.
Felipe Tuon quer, ainda, expandir o uso dessas materiais para curativos e, principalmente, para tubos de ventilação mecânica e cateteres, que — todo infectologista sabe — podem ser porta de entrada para bactérias parrudas. "Tudo isso já esta aqui", me diz, batendo a mão na testa.
4 comentários
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Juliocezar Gaspar
Parabéns Doutor.
Ana Leyla Ferreira Lacerda
Parabéns aos médicos, cientistas que possibilitam essas inovações!
Gerson Ferreira das Chagas
Eis um brasileiro que nos orgulha.