Alterações na voz podem ser a primeira pista de doenças neurodegenerativas
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Nem precisa ser uma frase inteligente: falar uma asneira qualquer já dá uma trabalheira danada ao seu cérebro. Você tem ínfima fração de segundo para resgatar do imenso gavetão da memória palavras que traduzam uma ideia abstrata ou uma imagem em sua mente. Feita a escolha do que irá dizer, imediatamente começa outro rebuliço cerebral.
A região frontal, atrás de sua testa, e a parietal, nas laterais da cabeça, envolvidas com a linguagem até a última sílaba, continuam agitadas. E muitas outras entram nesse falatório: a área de Broca, por exemplo, que fica no hemisfério esquerdo, logo passa a palavra para o córtex motor, no cocoruto, e para o cerebelo, próximo à nuca.
Eles irão articular músculos capazes de abrir e fechar a sua boca, moldando os lábios, que ora fazem biquinho, ora se esticam para produzir cada som. Sem contar o bailado preciso da língua. Conforme o fonema, ela deve relar nos dentes ou no céu da boca ou, quem sabe, não encostar em nada. E tudo isso para não falarmos dos pulmões, que se enchem e se esvaziam no tempo certo, vibrando as cordas vocais, sem as quais nada feito.
"Cada movimento deve ser muito bem executado e perfeitamente sincronizado com a respiração", me diz o neurologista comportamental sul-africano Hugo Botha, que é diretor associado do Programa de Inteligência Artificial de Neurologia da Mayo Clinic, em Rochester, nos Estados Unidos. "E o sistema nervoso central precisa estar bem para coordenar tudo."
Como médico, ele conta que sempre prestou máxima atenção ao jeito de falar dos pacientes, tentando descobrir o que poderia existir de errado com eles. "Isso porque, se houver qualquer problema com o cérebro, algo não sairá direito e a fala irá soar diferente", justifica.
Quando diz "diferente", ele não se refere apenas ao tempo de espera até alguém encontrar a palavra correta, à articulação para pronunciar direito os vocábulos, ao ritmo e aos intervalos entre uma frase e outra, embora tenha me listado tudo isso para eu entender de que alterações estava falando. O doutor Botha garante que até mesmo o timbre da voz pode mudar quando o cérebro começa a manifestar problemas. Ouvi aquilo e, confesso, estranhei. Mas ele esclareceu: "A vibração das cordas vocais também depende totalmente da sincronização com a respiração".
De acordo com o neurologista, as alterações na fala e na voz podem ser a primeiríssima pista de várias doenças neurodegenerativas, como acontece com um em cada quatro pacientes com ELA (esclerose lateral amiotrófica).
Com o Parkinson, com a miastenia grave, que produz episódios de extrema fraqueza muscular, com a demência frontotemporal, que ficou conhecida depois de ter acometido o ator americano Bruce Willis, e com várias outras doenças neurodegenerativas aparentemente é a mesma coisa: para muitos pacientes, o que apareceria na frente seriam determinadas mudanças na forma de falar.
Alterações muito discretas
A questão é que essas mudanças podem ser sutis e não serem percebidas até mesmo por ouvidos treinados, como os do doutor Botha. Daí que ele, que confessa sempre ter adorado matemática — e que, por causa desse gosto, acabou se interessando pelo campo da IA — resolveu conduzir pesquisas nessa linha.
"Fazia muito sentido, até pela facilidade com que isso poderá ser aplicado no futuro: você só precisa que a pessoa tenha um microfone, que pode ser o do celular. Os arquivos de som são pequenos e podem ser enviados de qualquer canto do mundo", observa. "Imagine o dia em que algo tão simples possa ajudar no diagnóstico ou no monitoramento de danos no cérebro!", prevê, em tom animado.
Aliás, ele aposta que a tecnologia será ainda mais útil justamente para monitorar a evolução de um quadro clínico, como o das sequelas de quem sofreu um AVC (acidente vascular cerebral), revelando se a pessoa está melhorando com a reabilitação ou não, por exemplo.
Para a máquina ouvir
Nos últimos tempos, todo paciente que entrava pela porta do Departamento de Neurologia da Mayo Clinic era convidado a participar da pesquisa liderada pelo doutor Hugo Botha. Quando topavam, eram instruídos a gravar a sua voz, repetindo alguns sons e respondendo algumas questões por meio de um aplicativo capaz de funcionar tanto no celular quanto no computador de casa.
"O que costumamos pedir pode variar conforme o caso", conta o pesquisador. "Às vezes, orientamos a pessoa a falar um 'aaaaaaaaa...' bem prolongado. E, então, isolamos e registramos sinais de movimentos mínimos de suas cordas vocais enquanto ela sustenta esse som", exemplifica.
Os médicos — com a IA ao lado deles — também consideram o uso incorreto de palavras e até erros gramaticais. "Também conta quando o indivíduo leva um tempo ligeiramente maior para encontrar o nome do que está vendo na imagem ou para entender a tarefa que o aplicativo sugere", acrescenta o doutor. Esse tipo de detalhe é especialmente importante no diagnóstico de problemas cognitivos.
Mas, atenção, nada disso isoladamente é capaz de dizer muita coisa. Ora, a gente às vezes se confunde porque está mais cansada ou emocionalmente abalada, quem nunca? É a somatória de tudo o que as gravações mostram que acaba pesando.
De tempos em tempos — a cada duas semanas ou a cada dois meses —, os voluntários da pesquisa enviavam novas gravações. "Desse modo, podíamos observar a evolução da doença e do tratamento", explica o doutor Botha.
Claro, quem mais aprendeu com as gravações desse banco foi a máquina. Cerca de 25 mil pacientes neurológicos falaram em seus "ouvidos". O número final de registros é bem maior porque cada um deles mandou cerca de doze gravações. "Na verdade, alguns enviaram uma quantidade até bem maior do que essa", comenta o doutor Botha. E cada gravação, por sua vez, trazia um volume impressionante de dados que a máquina soube escutar.
A inteligência artificial, mais do que notar aquelas levíssimas alterações, cruzou esses fenômenos com as informações do diagnóstico e até mesmo com o resultado de exames de biomarcadores, isto é, de moléculas presentes no organismo capazes de dedurar doenças. Assim, foi criando padrões para diferentes tipos de problemas neurodegenerativos.
"Para nós, neurologistas, também é importante entender exatamente o que não está funcionando direito se algo soa diferente. Por exemplo, se é o movimento da língua ou outra coisa qualquer, algo que essa tecnologia pode apontar. Isso nos ajuda a localizar a área do cérebro que está danificada", explica o doutor.
E agora?
"Já estamos em um ponto em que ganhamos uma boa confiança nos resultados da nossa pesquisa. Com isso, a ideia é de que, ainda este ano, o exame comece a ser feito pelos nossos colegas neurologistas para acompanhar o tratamento de quem tem uma condição neurodegenerativa" , anuncia o doutor Hugo Botha.
Segundo ele, assim como hoje os médicos auscultam o coração e medem a pressão, eles irão pedir para gravar a voz dos pacientes. E, claro, a inteligência artificial estará na escuta. Um dia, talvez, isso vire rotina nas consultas de todas as especialidades — e, aí, para flagrar doenças neurodegenerativas mais cedo.
A aposta é de que, no futuro, essas gravações simples servirão de método de rastreamento, sendo recomendadas principalmente para aquelas pessoas que, por algum motivo, seriam consideradas de maior risco, seja pela idade, pelo histórico familiar ou por doenças pregressas que favoreçam a degeneração dos neurônios. Bastará ter um microfone por perto. E soltar a voz.
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