Lúcia Helena

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Reportagem

Molécula extraída do sangue do próprio paciente ajuda a fechar feridas

Existem feridas que não se fecham. Tornam-se crônicas. Doem no corpo e na alma, já que o estado psicológico também fica bastante machucado, convivendo com o flagelo diário do ardor que não passa, da aparência que afasta os outros e, muitas vezes, do odor exalado pelo líquido que escoa do ferimento.

Casos assim sempre chamaram a atenção da enfermeira Chayane de Carvalho, que se especializou em cuidar de feridas em geral. "Mas o que sempre me sensibilizou foram as pessoas que convivem há anos com elas. Quando é assim, independentemente da localização e até mesmo do tamanho, o impacto na qualidade de vida é imenso", observa.

Existem uma série de eventos no organismo que, em um efeito dominó, fazem um rasgo na pele se fechar. No entanto, qualquer coisa que atrapalhe uma dessas etapas é capaz de levar a cicatrização para o brejo. "Se uma lesão não respondeu direito nas primeiras semanas, quando acontece o que chamamos de cascata inflamatória, isto é, se suas bordas não se unirem nesse período inicial, ela vai entrar em processo complicado de cronicidade", informa Chayane.

Algumas feridas crônicas são mais lentas, vamos dizer assim — às vezes melhoram, às vezes pioram e, no fundo, não saem muito do lugar. Outras envolvem tanta inflamação e, pior, infeccionam, que terminam aumentando com o tempo. É o mais terrível dos cenários.

Com a idade avançada, problemas de circulação agravados pelo sedentarismo podem abrir verdadeiras crateras nas pernas — são as úlceras venosas, provocadas pela dificuldade do sangue para retornar ao coração. Elas são um exemplo."Com o passar dos anos, de todo modo, a capacidade de regeneração dos tecidos sempre diminui, seja qual for o tipo de ferimento", nota a enfermeira

O paciente com câncer também corre risco de sofrer com feridas crônicas. "Algumas delas estão diretamente ligadas à retirada do tumor, quando o cirurgião precisa cortar uma boa parte do tecido em volta da lesão maligna para criar uma margem de segurança e, às vezes, até fazer enxertos. Isso é um procedimento muito necessário para tratar o câncer em si, mas em alguns casos é como se o local nunca cicatrizasse, inclusive pelo tamanho e pela profundidade da área retirada", explica Chayane.

E ela, que desde sua formação sempre se interessou por pesquisa, decidiu investigar uma saída. Ao lado da professora Beatriz Luci Fernandes, do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia em Saúde da PUC do Paraná, Chayane testou uma nova maneira de tratar essas feridas persistentes. A dupla de pesquisadoras extraiu, praticamente no mesmo momento de fazer o curativo, uma substância do sangue do próprio paciente: a fibrina, que na imagem ilustrando esta coluna se parece com fios azulados.

Essa proteína é famosa por, ao formar uma rede, ajudar na construção da casquinha dos machucados, que não deixa o sangue escapar pela brecha na pele. Mas ela faz muito mais do que esse papel de barreira: "A fibrina é um polímero, isto é, uma molécula bem comprida, feito uma corrente. Quando a separamos dos outros componentes sanguíneos, ela está inchada porque, entre os seus 'elos' , há substâncias que promovem a cicatrização, como fatores de crescimento", descreve a professora Beatriz, que é engenheira química dedicada à pesquisa de biomateriais, ou seja, de materiais compatíveis com o nosso organismo. Aliás, como é o caso da fibrina usada como curativo, já que é extraída dele mesmo.

Resultado espantoso

Um dos pacientes tratados desse jeito tinha uma ferida aberta há onze anos, que recebia apenas curativos comuns. Depois de três meses indo toda semana ao ambulatório para Chayne cobrir a ulceração com pedacinhos de sua própria fibrina, a qual a professora Beatriz tinha conseguido de uma amostra de 60 mililitros de sangue, não é que a ferida sarou?

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O estudo — que faz parte do mestrado da enfermeira — é uma série muito pequenina de casos. Foram só três pacientes com feridas provocadas por tipos diferentes de câncer. Um deles tinha um fibrossarcoma, com feridas espalhadas na nuca e até no couro cabeludo que, apesar dos sete meses de tratamento convencional, insistiam em ficar abertas. "A própria região do couro cabeludo dificulta a cicatrização", conta Chayane.

O segundo participante tinha um tumor de sistema nervoso que acabou ocasionando diversas feridas na nuca e na face. "Ele já tinha um sistema imunológico mais deprimido em função do combate ao câncer, aumentando o risco oferecido pelas feridas abertas", relembra a enfermeira. Por último, uma mulher que, por causa de um câncer mamário, tinha passado por várias cirurgias. A ferida no local das tentativas de enxerto vivia vazando e ela mal saía de casa por vergonha.

Sim, ainda é quantidade milimétrica de pacientes tratados, precisamos reconhecer. Mas, devido ao sucesso nesse trio de casos, a pesquisa parte para uma nova etapa, com um número bem maior de indivíduos. "E a ideia, agora, é conseguir pacientes com feridas crônicas de diversas origens, não só aquelas que são consequência de um câncer", afirma a professora Beatriz. A expectativa de curá-las é alta.

Para obter a membrana de fibrina

A sacada de extrair a fibrina dos pacientes para tratar feridas foi, na realidade, da professora Beatriz Fernandes: "Há muito tempo as membranas de fibrina vêm sendo usadas na Odontologia, quando são feitos enxertos, para acelerar a regeneração do tecido", ela esclarece. "Uma amiga biomédica, que atuava nessa área, estava inconformada porque não conseguia convencer os médicos a tentar essa solução em pacientes com feridas pelo corpo", relembra. Quando surgiu a oportunidade de orientar o mestrado de Chayane de Carvalho, a professora resgatou essa ideia.

Ao chegarem ao ambulatório, além de responderem a algumas perguntas para avaliar como estavam, tanto em matéria de dor quanto de estado psicológico — e é claro que melhoravam de ânimo na medida em que o ferimento ia se resolvendo —, os pacientes tinham uma amostra de sangue coletada.

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Aliás, esse sangue não era colhido de qualquer jeito. Há uma técnica sutil, revelada pela enfermeira Chayane: "A agulha precisava alcançar um ponto bem no meio da passagem da veia, onde o fluxo de sangue é mais veloz", explica. Segundo ela, se a pontinha da agulha parasse mais próxima da parede do vaso, a amostra viria com menos fibrina, veja só! Isso porque ali, só da picada, o sangue já começaria a coagular em volta, usando parte da fibrina para isso. A mesma coisa aconteceria se a enfermeira pegasse um "vaso ruim", com o sangue escoando mais lento para dentro do tubo.

Esse tubinho, por sua vez, ia direto para a centrifuga da professora Beatriz. Girando em altíssima velocidade, os glóbulos vermelhos acabavam se depositando no fundo. "Já a membrana de fibrina ficava bem em cima", descreve a engenheira química.

É uma membrana mesmo, enrolada, parecendo uma minhoca minúscula e transparente. "E ela é inchadadinha, porque, presos nos espaços vazios das moléculas de fibrina, estão citocinas de defesa, fatores de crescimento e outras substâncias que contribuem para uma boa cicatrização", conta a professora, que precisava resgatar a tal "minhoquinha" do tubo com o maior cuidado. "Se eu apertasse, o que restaria lembraria um pedaço de plástico."

Um novo jeito de fazer curativo

O processo para extrair a fibrina durava em torno de uns dez minutos. Esse tempo era aproveitado pela enfermeira Chayane para limpar o machucado, às vezes até com a ajuda de pinças. "Precisava deixar a superfície o mais pura possível", diz ela. "Ora, se eu colocasse uma membrana com tudo de bom para cicatrizar em cima de uma casquinha de pus seco, naquele canto a fibrina não ajudaria em nada. Ela precisaria estar em contato com o tecido vivo, em condições para aproveitá-la."

A membrana coletada nunca era suficiente para cobrir tudo, por menor que fosse a lesão. Era repartida na hora, em minúsculos pedaços, que a enfermeira espalhava criteriosamente pelo machucado, privilegiando as áreas que parecessem estar mais propensas à cicatrização. Se elas se fechassem, outras áreas, na vizinhança, na semana seguinte poderiam estar mais propensas também.

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No final, Chayane fazia uma leve — levíssima — compressão para a fibrina colar ali, sem se perder nada. Aliás, desperdício zero: o resto de líquido que ficava no recipiente onde estava membrana era retirado com uma seringa. Com ele — cheio de fatores de crescimento que escaparam pelo caminho —, a enfermeira regava a ferida, usando uma espécie de tela, depois, para tapá-la. Essa tela, por sua vez, era rica em ácidos graxos, ou seja, em óleo, para não deixar o líquido no interior da fibrina escapar.

É um serviço tão delicado que, as pesquisadoras calculam, a capacidade máxima será de atender cinco pacientes por dia na nova fase de estudo. Esse é um fator limitante. "O outro é conseguir participantes com feridas crônicas diversas", conta a professora. Segundo ela, foi uma batalha de quase ano para conseguir os três voluntários da primeira fase.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

6 comentários

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Marcelo Venturini

Ano passado fiz um procedimento para recuperar uma ferida de grande porte. O médico retirou sangue da minha medula e aplicou no ferimento. O resultado foi muito satisfatório. O seu estudo é muito mais complexo, específico e completo. Meus parabéns pela pesquisa. Show...!!!

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Adélia Maria da Silva

Show! Viva a Ciência! Parabéns às pesquisadoras!

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Miguel Angelo Nunes Bonifacio

Que essa reportagem ajude a encontrar novos pacientes e abra os olhos de quem pode apoiar. Sucesso neste exemplo de criatividade e pesquisa.

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