Hora da picada: existe técnica para uma vacina ou outra injeção doer menos
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Já ouvi gente reclamando, mas nunca a ponto de dizer: "hmmm, esse antibiótico está me dando um pouco de embrulho no estômago, vou parar de tomar e jogar a caixa fora." Nem soube de roda de conversa em que alguém contou que estava usando antiinflamatório e a outra pessoa se virou com os olhos arregalados, indagando na maior aflição: "teve dor de barriga?"
Mas, se o assunto é vacina, a história muda de figura. É um tal de "senti meu braço pesar", "ficou um calombinho no lugar", "ardeu pra caramba". E a invariável pergunta dos próximos na fila: "Doeu?". Tolerância beirando a zero.
A enfermeira Mayra Moura sabe muito bem que qualquer coisa assim é capaz de fazer um indivíduo desistir se imunizar, perdendo a chance de se proteger contra doenças graves.
Mestre em tecnologia de imunobiológicos e doutora em saúde coletiva, ela atualmente é gerente de farmacovigilância do Instituto Butantan, em São Paulo, e membro da diretoria da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações). E é no evento anual dessa sociedade que coordena uma das mais concorridas atividades, a Clínica de Vacinação, onde os participantes treinam a técnica correta e precisa de administrar imunizantes.
Mayra fala da picada das vacinas porque se dedica a elas há 18 anos. Garante que jeito certo de aplicá-las — "não é como lançar um dardo no braço ou no bumbum!", avisa — alivia muito mal-estar usado como desculpa ou obstáculo, fazendo mães adiarem a ida ao posto só de imaginarem o berreiro do filho e adultos bancarem os fujões.
Mas será que essa técnica toda valeria para outras injeções? "Sim, claro", respondeu a doutora, quando a convidei para uma entrevista. Nessa altura, eu já tinha aprendido com ela que a agulha pequenina — aquela pela qual sempre rogava quando me apontavam uma seringa — pode doer muito mais que uma impressionante agulha longa. E que, portanto, muitas vezes nesta vida eu pedi para sofrer.
Na gordura ou no músculo?
Alguns remédios injetáveis precisam ser entregues diretamente na veia. Mas as vacinas se dividem apenas entre dois grupos. Há aquelas que devem alcançar o músculo, que é um tecido bastante irrigado de sangue, capaz de absorver mais depressa tudo. Aliás, é o caso da maioria dos imunizantes. E há as que devem ficar na gordura logo abaixo da pele, que tem uma absorção mais lenta — como acontece com a vacina de catapora, a de febre amarela e a tríplice viral, contra sarampo, caxumba e rubéola.
"Se chegam no lugar errado, podem perder até um pouco da eficácia, o que é alertado em bulas", conta Mayra. Diga-se, existem medicamentos em que isso também é capaz de ocorrer.
Mas, falando de vacinas, geralmente as que são administradas no músculo têm componentes chamados de adjuvantes, que pirraçam o sistema imunológico, potencializando a resposta contra uma infecção. No entanto, se um adjuvante desses sai da agulha sem ela ir tão fundo, a inflamação fora de lugar — isto é, na gordura subcutânea — vai ser sentida dolorosamente. "Se eu injeto com uma agulha curta, o local ficará muito irritado, vermelho e quente. O desconforto, muitas vezes, exige remédio", nota Mayra.
No bumbum ou no braço?
Ou seja, pedir por uma agulha menor pode ser roubada. Quem aplica é que sabe. E, às vezes, tampouco é caso de escolher o lugar de preferência para levar a picada. No caso das vacinas, a contra a raiva e a pneumocócica são exemplos do que nunca deveria ser aplicado no bumbum por causa do prejuízo na eficácia.
Afinal, são intramusculares e essa região costuma ter uma camada de gordura razoável. Então, para alcançar o músculo — e doer menos, inclusive — seria necessário contar com um agulha das mais longas. "Ou o risco de ir parar no tecido subcutâneo se torna bem grande", explica Mayra.
O ângulo da espetada
A especialista mostra que, se a ideia é não ir além do tecido subcutâneo, a agulha — além de ser curta — deve entrar em um ângulo de 45 graus, ou seja, inclinado. E quem aplica ainda segura o lugar, formando uma dobrinha ou prega de gordura por garantia extra.
Já na injeção intramuscular, a agulha comprida deve entrar em ângulo absolutamente reto, para atravessar toda a camada gordurosa e ir fundo.
Se alguém é muito magro ou se tem obesidade
Gordura corporal a mais ou a menos exige olho treinado. "Se a injeção é subcutânea, lembre-se que todo mundo tem gordura em algum canto, mesmo crianças bem magras", diz a enfermeira, já apontando a saída em situações assim: "A gente faz a aplicação atrás do braço ou na parte superior da coxa, perto da virilha. Sempre há uma gordurinha ali".
Ela explica que as injeções no músculo é que podem ser desafiadoras — por exemplo, em bebês prematuros — para não chegarem até o osso. "Sempre repito que não existe tamanho de agulha igualmente certo para todo mundo. Quem aplica a injeção é que deve decidir qual comprimento usar conforme cada paciente", diz a enfermeira.
O cuidado vale para pessoas com obesidade. Às vezes, para aplicações nos músculos, será necessário usar agulhas ainda mais longas para atravessar toda a gordura.
O ponto exato
Outro detalhe que evita sofrimento — o de a agulha espetar um nervo — é dar a picada no lugar preciso. No braço, ele seria bem no centro do músculo deltoide, no ponto mais proeminente, que fica altura da axila.
No bumbum, quem vai aplicar desenha mentalmente uma linha horizontal partindo da prega interglútea — popular, rego — , cruzando-a no meio. A picada será no quadrante superior. "Isso para fugir do nervo ciático, que passa ali perto", justifica Mayra.
A região mais legal de todas, porém, seria a chamada ventroglútea, sabe qual é? Na altura do glúteo, mas na lateral do corpo. "Nela, encontramos um sanduíche de três músculos e é baixíssimo o risco de pegarmos um nervo ", diz Mayra.
Estudos afirmam, que existe até redução de reações como febre quando a picada é nessa área do corpo. A própria Mayra Moura revela: "Já tomei benzilpenicilina no ventroglúteo e não senti quase nada", referindo a um antibiótico que é tido como uma das injeções mais dolorosas da paróquia.
Mas, assim como não adianta escolher o tamanho da agulha, nem insista em pedir que uma injeção seja no ventroglúteo. No Brasil, só o estado de Santa Catarina tem a tradição de aplicar vacinas instramusculares ali.
Por que razão? "Por medo. Os profissionais de saúde não aprendem a técnica do ventroglúteo na faculdade", opina a diretora da SBIm. E, afinal, o que consideramos "mão leve" para dar uma vacina ou outra injeção é, na realidade, muita técnica, treino constante, além do conhecimento de anatomia, fisiologia e microbiologia, para evitar contaminações.
Por que o braço pode "pesar" depois?
Mayra Moura responde esta: "Primeiro, você está colocando um líquido entre as fibras musculares. Isso pode dar uma sensação parecida com aquela de quem fez um treino com pesinhos e sente até um leve desconforto ao erguer o braço nas horas seguintes".
Além disso, existe aquela reação inflamatória que está acontecendo no interior dos músculos. "Não necessariamente, como a aplicação chegou no lugar certo, você terá dor, mas sentirá algo estranho", comenta a diretora da SBIm.
Dá para minimizar o incômodo posterior relaxando a região da injeção. Não consegue? "Então, o melhor é mudar de foco, como conversar, prender o ar e contar até três ou até mesmo soprar em um saco", orienta Mayra Moura que ainda aconselha as mães a amamentarem bebês pequenos na hora agá. Tirar o pensamento do momento da picada, de fato, ajuda.
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