Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A saúde em risco
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Publicações científicas internacionais não costumam escrever editoriais defendendo voto, muito menos se intrometem em eleições de países a que não pertencem.
Isso mudou com a tentativa de reeleição do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Ao perceberem que o republicano representava uma ameaça à ciência, periódicos como "The Lancet" resolveram pedir que os norte-americanos não votassem em Trump.
A revista britânica, fundada em 1823, escreveu um editorial contundente em que manifestava, pela primeira vez na sua história, o apoio à eleição do democrata Joe Biden.
O mesmo posicionamento tiveram outros periódicos, como a "Nature" e o "New England Journal of Medicine", que até então havia se mantido apartidário durante seus mais de 200 anos de existência.
Com a aproximação do segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, dois desses periódicos tomaram atitude semelhante: escreveram editoriais conclamando a população a não votar em Bolsonaro.
Mais do que a defesa do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva, os editoriais alertam para o risco que a ciência e o próprio país correm se reelegermos o atual presidente.
Em editorial publicado nesta terça (25), a "Nature" assegurava: "Nenhum líder político chega perto de ser perfeito. Mas os últimos quatro anos do Brasil são um lembrete do que acontece quando aqueles que elegemos desmantelam ativamente as instituições destinadas a reduzir a pobreza, proteger a saúde pública, incrementar a ciência e o conhecimento, proteger o meio ambiente e defender a justiça e a integridade das evidências".
A revista "The Lancet" publicou, em setembro, editorial em que afirmava: "A gestão desastrosa da pandemia de covid-19 e o desrespeito de Bolsonaro às mulheres, às minorias étnicas, aos povos indígenas e ao meio ambiente são amplamente conhecidos. Durante o governo de Bolsonaro, as medidas de proteção social foram prejudicadas pela redução do financiamento, as desigualdades e a pobreza aumentaram acentuadamente, e o Brasil voltou a fazer parte do Mapa da Fome da ONU".
As semelhanças entre a gestão de Donald Trump e a de Jair Bolsonaro são conhecidas: sabotagem das medidas recomendadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e outras organizações e autoridades sanitárias para controlar a disseminação da pandemia; ataques à ciência; defesa de medicamentos sem eficácia para tratar a covid-19; desprezo por pesquisadores, universidades e pelo conhecimento acadêmico.
No caso do Brasil, ainda podemos acrescentar a ocupação do Ministério da Saúde por militares não qualificados para a gestão da saúde pública; a negligência na compra das vacinas; o ataque a prefeitos e governadores que tentaram controlar a tragédia que vivíamos; o boicote ao uso de máscaras; o desrespeito por mortos; e a minimização da gravidade da pandemia.
Embora muitos médicos brasileiros tenham fechado os olhos para o que presenciaram durante a pandemia, é difícil trabalhar com ciência e saúde e pensar em qualquer argumento racional que justifique posicionamento diferente do emitido nos editoriais citados.
Se não fossem suficientes os desmandos durante a pandemia, o anúncio de cortes significativos no orçamento da saúde para 2023 que prometem comprometer os serviços essenciais deveria ao menos fazê-los questionar as prioridades do atual governo.
Nós, jornalistas que cobrimos a pandemia, não conseguimos esquecer o que vimos. Escutamos com frequência que não devemos manifestar voto, sob o risco de comprometer nossa objetividade, a que muitos chamam de imparcialidade.
Mas em nosso código de ética está escrito: "É dever: opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos".
A todos que estavam aqui durante os últimos anos, deixo a pergunta: é possível esquecer o que vimos?
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