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Nuno Cobra Jr

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Um campeão deve ter a frieza de um serial killer

O tenista Rafael Nadal lesionado nas quartas de final de Wimbledon - Getty Images
O tenista Rafael Nadal lesionado nas quartas de final de Wimbledon Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

09/07/2022 10h17

Depois de uma carreira impecável, sendo reconhecido como um dos maiores tenistas de todos os tempos, se estabelecendo como um exemplo de dedicação, perseverança e competitividade, Rafael Nadal se vê envolvido em questões complexas em relação à ética esportiva.

A sua vontade de ganhar extrapolou os limites da sensatez e nos últimos meses ele tem apelado a recursos ilícitos e danosos para continuar a ser competitivo.

Para o espetáculo é bom, mas começa a parecer um circo romano no qual vale tudo, mesmo que a custa de sacrifícios desumanos e cruéis.

Em seu último jogo em Wimbledon, deu a impressão que o desejo do seu pai era entrar na quadra para convencê-lo a abandonar a partida. Em seu "corner", os familiares e a sua equipe já não aplaudiam e se mostravam extremamente tensos e preocupados.

Foi então que algo surpreendente aconteceu, o seu adversário, o ótimo jogador, Taylor Fritz, vendo que o jogo estava em sua mão, perdeu intensidade e começou a sentir uma pressão psicológica inusitada. Eu conheço esse fenômeno, quando um jogador se vê com a obrigação de ganhar, já que o seu oponente está lesionado, praticamente abatido, muitos não lidam bem com essa questão e, subitamente, perdem muito rendimento.

Como costumamos dizer, de maneira positiva, o campeão é um matador impiedoso e cruel que não sente pena do seu adversário e só tem um pensamento em mente: submetê-lo e dominá-lo até conseguir eliminá-lo totalmente. Como diz um tenista profissional amigo meu, não estamos aqui para fazer caridade, se eu puder agredir e ameaçar o meu adversário, é isso que eu vou fazer.

Essa característica evolutiva, herdada devido a luta pela sobrevivência, diz muito sobre a nossa sociedade e levanta uma pergunta incomoda: vale tudo para se conquistar uma vitória?

Por ser frio e obsessivo, eliminando suas vítimas de forma agressiva e consistente, uma a uma, sem qualquer remorso, um legítimo campeão pode ser comparado a uma espécie de serial killer que é visto socialmente de forma positiva (risos).

Vale tomar injeções e outros recursos extremos para continuar competitivo?

Assim que sentiu a lesão, Nadal foi para o vestiário e, milagrosamente, devido a algum fator extracampo, continuou jogando, mesmo com limitações e, no fim, acabou ganhando a partida. Como sabemos que ele tem apelado a diversos recursos, como anti-inflamatórios, bombas analgésicas e injeções, provavelmente algo o manteve vivo na partida.

A vitória a qualquer custo, mesmo que usando recursos ilícitos, nos transforma em um herói raçudo ou em um mal exemplo de ética esportiva e comportamento saudável? Isso foi justo com o jovem e talentoso tenista que acabou sendo eliminado?

Mais tarde, ficamos sabendo que o custo desse exagero tinha gerado um rasgo de 7 mm em seu abdome. Da última vez em que isso tinha acontecido, em 2009, segundo ele mesmo contou, essa mesma lesão havia se multiplicado por 8 e se tornado crônica e complexa.

Mesmo assim, no dia seguinte as quartas de final em Wimbledon, ele foi treinar e prometia jogar a semifinal do torneio. Fiquei aflito, acompanhando os acontecimentos e pensando no custo absurdo a sua saúde que essa decisão insana poderia acarretar.

Quando um repórter lhe perguntou quantas injeções ele estava tomando diariamente, ele respondeu: Nem queira saber!

Em suas últimas conquistas, ele tem competido com o pé anestesiado, uma injeção aplicada no nervo que tira a dor absurda que ele sente diariamente, devido a uma condição rara conhecida como síndrome de Mueller-Weiss.

Isso causou revolta nos atletas profissionais de ciclismo que reclamaram que em sua modalidade seria inimaginável algo assim ser permitido.

Aqui é preciso fazer um parêntese, já que as diferenças entre cada esporte são enormes. O ciclismo convive com escândalos de doping há muitas décadas, sendo uma atividade física que leva o corpo a um limite absurdo e extremo.

No tênis, até onde sabemos, não existe muito vantagem no doping, uma vez que o jogo exige extrema lucidez e concentração, apesar da grande exigência física.

Ninguém conta o que acontece depois

Agora, aos 56 anos, quando olho em volta e vejo os meus amigos que competiam em esportes exigentes, de alto impacto ou alta resistência, como corridas de longa distância, por exemplo, o cenário é de calamidade.

Está todo mundo quebrado e com lesões complexas que atrapalham muito a qualidade de vida nessa fase.
Quando conquistamos um título, mostramos todos os detalhes nas redes sociais, por outro lado, temos vergonha de postar a realidade cruel que está por trás dessa conquista. Dessa forma, os mais jovens seguem iludidos, sem saber o que pode lhes aguardar lá na frente.

Em minha pesquisa, conversando com ex-atletas do basquete, pude constatar a gravidade dessa situação, muitas delas não conseguem mais fazer uma simples caminhada, estão acima do peso e, incapacitadas, sofrem com dores intensas diariamente.

Depois de 38 anos, treinando grandes atletas, fico surpreso quando um novo aluno chega para mim e diz que quer cuidar da sua saúde e que, por isso, resolveu começar a treinar para a maratona. "Como assim, cuidar da saúde?", eu penso.

Em seguida, tento argumentar, dizendo que esse tipo de atividade é muito extremo e, consequentemente, pode gerar um custo extremo. Já treinei alunos para a maratona, mas costuma aconselhá-los a não estender muito a duração da dedicação a essa modalidade.

Como costumo explicar, de forma didática, saúde e performance são os dois extremos do treinamento físico, sendo assim, quando mais nos aproximamos do espectro da performance, menos saudável será o treinamento.

Curioso pensar que no mundo corporativo acontece esse mesmo fenômeno, muitas pessoas fazem todo tipo de sacrifício, abrindo mão de cuidados básicos com a sua saúde física e mental e, depois, o resultado é catastrófico.

A vitória a qualquer custo vale a pena? Algum dia o seu corpo vai dizer que não.