'Maria das Dores': como médicos subestimam e menosprezam a dor feminina
O tratamento do paciente com dor aguda ou crônica exige imparcialidade, rapidez e eficácia. No entanto, evidências robustas demonstram que as decisões dos profissionais de saúde para controle da dor nos departamentos de emergência desfavorecem as pacientes do sexo feminino em comparação ao sexo masculino.
Habitualmente, queixas dolorosas semelhantes em homens e mulheres são tratadas de forma diferente.
Estudos clínicos mostraram que a dor das mulheres é estereotipicamente julgada como menos intensa do que a dos homens, além de terem seus relatos menosprezados e ironizados. As que se queixam até mesmo são chamadas de "Maria das Dores".
Recentemente, realizou-se um estudo clínico com 21.851 pacientes no departamento de emergência de dois países, EUA e Israel. O conjunto dos dados mostrou consistente disparidade sexual, que persistiu mesmo após o ajuste dos níveis de dor e de outras variáveis.
Essa disparidade se estendeu aos médicos(as), que prescreviam menos analgésicos para mulheres. Geralmente, pessoas do sexo feminino recebem prescrições de medicamentos menos potentes e mais prescrições de antidepressivos para alívio da dor.
Outro cenário importante no subtratamento da dor feminina diz respeito à participação das mulheres em ensaios clínicos e instrumentais. Uma revisão sistemática de 195 ensaios clínicos feitos entre 2013 e 2022, publicada na revista acadêmica Jama Internal Medicine, mostrou que apenas um terço dos participantes eram mulheres.
Essa subrepresentação também foi observada em relação a testes de dispositivos médicos, que não aumentou ao longo das décadas. A disparidade foi maior em ensaios que testaram dispositivos cardiovasculares, como stents e bombas, nos quais a representação feminina foi de apenas 29%.
A autora do estudo, Emily Harris, defende que agências como a FDA, dos Estados Unidos, deveriam "recusar revisões de aplicações dos dispositivos médicos e medicamentos quando a representação das mulheres não refletir a população de uso pretendido dentro de uma margem razoável".
Para que esse cenário mude, os estudos clínicos e instrumentais futuros devem não só incluir homens e mulheres, mas também avaliar e relatar os resultados com base no sexo e/ou gênero. Idealmente, esses estudos também deveriam considerar comorbidades como depressão ou transtorno de estresse pós-traumático, geralmente mais frequentes entre mulheres, que podem alterar a percepção e a resposta à dor.
Além disso, pesquisas adicionais são necessárias para determinar respostas dos diferentes sexos a medicamentos, incluindo opioides, considerando grau de analgesia, risco de dependência e overdose, além de opções para o desenvolvimento de outras modalidades analgésicas para aliviar a dor em homens e mulheres.
É preciso lembrar que o tratamento inadequado da dor, seja em mulheres ou homens, compromete não só a saúde física, mas também a mental, a funcionalidade do paciente e sua qualidade de vida como um todo.
Portanto, os profissionais da saúde de todas as áreas precisam estar cientes das particularidades das dores femininas.
Médicos e pacientes precisam lutar e se informar para que todas as "Marias das Dores" possam ser ouvidas, respeitadas e terem suas dores devidamente tratadas.
*Telma Zakka é médica ginecologista especialista em dor crônica e presidente do Comitê Científico de Dor da APM (Associação Paulista de Medicina).
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