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Rico Vasconcelos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Clamídia é uma IST que se esconde do sistema imune e dos gestores de saúde

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

16/09/2022 04h00

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Chlamydia trachomatis, ou simplesmente clamídia, é o nome da bactéria causadora da infecção sexualmente transmissível (IST) mais frequente do planeta. Segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) ela, sozinha, é responsável globalmente por cerca de 1 milhão de novas infecções todos os dias.

Sua infecção pode causar sintomas de uretrite (incômodo para urinar e saída de secreção pela uretra) e proctite (dor para evacuar, com a saída de sangue ou muco nas fezes). De forma menos frequente, provoca quadros clínicos graves de infecção nos órgãos do sistema reprodutor feminino, podendo levar até mesmo à infertilidade.

No entanto, não sei dizer se felizmente ou não, a maior parte dos casos de infecção por clamídia ocorre sem causar absolutamente nenhum sintoma.

O caráter predominantemente assintomático da infecção por clamídia favoreceu a sua disseminação pelo mundo junto com os seres humanos ao longo da história. Afinal, quando tem sintomas, uma pessoa tende a buscar tratamento. Por outro lado, por não saber que está infectado, um indivíduo assintomático não é tratado e segue transmitindo a bactéria para suas parcerias sexuais.

Na última semana, um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, nos ajudou a dar mais um passo na compreensão de como a clamídia consegue infectar as células humanas sem ser notada pelo nosso sistema imune.

Os pesquisadores identificaram que uma proteína da clamídia chamada GarD bloqueia o funcionamento dos mecanismos de defesa que normalmente a eliminaria, permitindo assim que ela fique escondida dentro das células, como se fosse um lobo disfarçado com pele de cordeiro.

A descoberta é animadora pois abre um importante campo de pesquisa científica, com a possibilidade de desenvolvimento de drogas que atuem desmontando esse mecanismo de disfarce bacteriano e liberando a célula para usar suas defesas contra microrganismos invasores.

Voltando agora da ficção científica para o momento atual, enquanto o futuro não chega, temos que olhar para as ferramentas que já temos disponíveis para controlar a disseminação sexual da clamídia. E nesse aspecto, o plano proposto é o seguinte: precisamos rastrear as infecções assintomáticas por essa bactéria na população sexualmente ativa, tratar os casos diagnosticados e dessa maneira interromper a cadeia de transmissão na comunidade.

Utilizando o acompanhamento das pessoas que fazem uso da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV) como estratégia de rastreamento periódico de ISTs, uma modelagem matemática publicada em 2017 havia previsto que com plano apresentado acima seria possível reduzir nos Estados Unidos a incidência de infecção por clamídia em 40% num período de 10 anos.

Mais recentemente, um outro estudo demonstrou que com a ampliação do acesso à PrEP na Austrália, a implementação da rotina de rastreamento e tratamento de ISTs no contexto de vida real fez com que a taxa de incidência de infecção por clamídia no país caísse 13,8% entre 2016 e 2019.

De fato, a PrEP não protege seus usuários de outras ISTs além do HIV, mas sem dúvida foi a melhor oportunidade que a humanidade já teve até hoje para manter uma população sabidamente vulnerável a ISTs em uma rotina de testagem e tratamento, independente da presença de sintomas.

No Brasil, dificilmente seguiremos o exemplo australiano citado pois o acesso aos testes moleculares que fazem o rastreamento das infecções por Clamídia ainda é bastante restrito. Apenas em alguns municípios, como São Paulo, existe um esforço dos gestores de saúde para disponibilizar o exame para usuários de PrEP.

Além disso, no Brasil os casos de infecção por Clamídia sequer são notificados e contabilizados. Fazendo, dessa forma, com que a Clamídia consiga de maneira bastante eficiente se esconder não só do sistema imune, mas também do sistema público de saúde.

Para colocar em prática o plano de rastreamento e tratamento de ISTs recomendado pela OMS, precisaríamos de interesse político e investimento. Como faltam os dois, temos optado por continuar simplificando a complexidade do tema, culpando o comportamento sexual das pessoas pelo descontrole das ISTs.