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Rico Vasconcelos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com o surto de monkeypox, o turismo da vacina está de volta

Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

30/09/2022 04h00

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Menos de dois anos depois de enfrentarmos a corrida global por doses de vacina contra covid-19, cá estamos nós no surto de monkeypox vivenciando um replay desse roteiro desagradável.

No caso do monkeypox, no entanto, a situação é um pouco pior devido à menor quantidade de doses de vacina disponíveis. Até que seja transferida a tecnologia para que outros centros possam também fabricar doses dessas vacinas, existe apenas uma indústria situada na Dinamarca para suprir toda a produção.

Uma vez que desde o início do surto, em maio de 2022, a demanda mundial de doses de vacina contra monkeypox vírus explodiu, restou à fábrica que as produz dividir os lotes disponíveis e distribuir em pequenas porções aos países que estão na fila de espera.

Exatamente da mesma forma que para a covid-19, o Brasil demorou para entrar nessa fila. E, assim, estamos prestes a completar 4 meses desde que o primeiro caso de monkeypox foi diagnosticado no país, sem que nem ao menos uma dose da vacina tenha sido aplicada em território brasileiro.

Nessa corrida, largaram na frente os países que já tinham estocadas algumas doses dessa vacina, guardadas para o caso de uma guerra biológica, como os Estados Unidos, Canadá e alguns países europeus. O motivo do estoque era na verdade o medo do retorno da varíola humana, doença causada pelo smallpox, erradicada por meio da vacinação na década de 1980. Contudo, havendo imunidade cruzada entre os dois vírus, nenhum desses países hesitou em começar a gastar as doses que tinham para controle do surto atual.

É preciso que fique claro, portanto, que as vacinas que estão sendo usadas para proteção contra o monkeypox nunca foram testadas para esse fim em um ensaio clínico controlado, como foram as de Covid-19.

Temos apenas um artigo publicado em 1988, conduzido no então Zaire, país africano hoje denominado República Democrática do Congo, que demonstrou retrospectivamente que, entre 1980 e 1984, as pessoas que tinham sido vacinadas previamente contra o smallpox tiveram 85% menos infecções por monkeypox. Por isso, então, acreditamos que aqueles que foram vacinados contra varíola humana antes da sua erradicação devem ter até hoje alguma proteção contra o monkeypox e ter formas mais brandas dessa doença, caso infectados.

Esse estudo, juntamente com alguns outros realizados em macacos, foram considerados suficientes para que as agências regulatórias dos Estados Unidos, Canadá e Europa aprovassem o uso dessas vacinas para a prevenção contra o monkeypox e que as doses começassem lá a serem aplicadas já a partir de junho de 2022.

Aos poucos, os brasileiros que viajaram a trabalho ou por lazer para qualquer uma dessas localidades foram descobrindo que, se buscassem um centro de vacinação, poderiam se vacinar contra o monkeypox mesmo não sendo residentes daqueles países. E agora, em mais um flashback da covid-19, já vemos pessoas planejando sua próxima viagem no final do ano levando essa informação em conta na escolha do roteiro.

Apesar de haver duas vacinas diferentes licenciadas para smallpox, a maioria das doses aplicadas nesses países está sendo do modelo mais moderno e seguro (MVA - Modified Vaccinia Ankara). De acordo com a sua bula, essa vacina deve ser aplicada em duas doses com o intervalo de 4 semanas entre elas, no entanto, para a alegria dos turistas da vacina, uma única dose já é capaz de induzir a produção de anticorpos protetores em níveis bastante satisfatórios.

Assim, com o objetivo de fazer o estoque restrito de doses da vacina render mais, alguns países estão inclusive aplicando apenas uma dose em cada indivíduo e adiando a segunda dose. Nos Estados Unidos, país com o maior número de casos registrados da doença, autoridades de saúde pública estudam a aplicação de doses fracionadas, com um quinto da dose habitual, para ampliar ainda mais a cobertura vacinal até que a oferta de doses se normalize. Essa estratégia foi recentemente utilizada com sucesso para conter surtos de febre amarela.

Aqui no Brasil, como segundo país com mais casos registrados da doença no mundo, ainda aguardamos o início da campanha de vacinação com o primeiro lote comprado de vacinas dinamarquesas.

Uma vez que por enquanto só será vacinado quem tiver recursos para viajar para o exterior, infelizmente já começa a ficar claro para o monkeypox que a desigualdade social será, mais uma vez, um determinante importante da incidência e gravidade na epidemia.