Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Depois de protagonismo mundial, programa brasileiro de HIV está sob ameaça
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Se você esteve vivo no Brasil depois da década de 1990, certamente já ouviu a expressão "O programa brasileiro de HIV/Aids é uma referência mundial".
A frase se refere à bem-sucedida resposta de saúde pública para a epidemia de HIV/Aids que chegou ao país no início da década de 1980. Em parceria com a sociedade civil, o jovem programa brasileiro de HIV/Aids obteve resultados exemplares no controle dos casos e mortes pela doença, o que fica evidente quando comparamos os dados epidemiológicos brasileiros com os de outros países.
No entanto, depois de algumas décadas, podemos dizer que o sucesso desse programa deu lugar a uma verdadeira luta por sua sobrevivência.
Em seu último relatório In Danger, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), alerta que, enquanto em algumas regiões do globo o enfrentamento do HIV está indo bem e atingindo suas metas, em outras está passando por uma crise e perdendo força nos últimos anos.
Exatamente por isso, tivemos, em 2021, 1,5 milhão de novas infecções por HIV registradas globalmente, número 3 vezes maior que a meta de incidência anual projetada pelo Unaids.
Infelizmente, o Brasil e a América Latina estão dentro desse grupo de insucesso.
Entre as principais causas da desmobilização da resposta ao HIV, o relatório do Unaids cita a queda do financiamento para as ações de prevenção e tratamento do HIV ao redor do mundo. Segundo o documento, antes mesmo de 2020 já se podia identificar a redução nos recursos destinados para esse fim, mas tal fenômeno se intensificou com a pandemia de covid-19, com a guerra da Ucrânia e todos os efeitos econômicos e sociais associados a esses eventos.
Para se ter uma ideia, o total de investimentos destinados mundialmente para o HIV/Aids em 2021 (US$ 21,4 bilhões) foi 6% menor do que o de 2010, tendo como início do seu declínio, o ano de 2013. Enquanto isso, no mesmo período o número de pessoas vivendo com HIV no planeta aumentou em cerca de 25%, passando de 30,8 para 38,8 milhões de pessoas.
No Brasil, o cenário não é diferente do apontado pelo relatório do Unaids. Ano após ano estamos aqui testemunhando o desmonte do programa de HIV/Aids, que outrora foi um exemplo no Ministério da Saúde de êxito em saúde pública. E esse processo se intensifica a partir de 2019.
Como exemplos, posso citar que primeiro o programa brasileiro perdeu o status de departamento próprio dentro do ministério. Depois, perdeu o termo "HIV/Aids" em seu nome, passando a fazer parte do esdrúxulo "Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis". E em seguida, interrompemos a produção e divulgação das tradicionais campanhas oficiais de prevenção e testagem de HIV.
Em relação ao seu financiamento, a situação programa brasileiro de HIV/Aids, é ainda mais preocupante. Em levantamento realizado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde e da associação filantrópica Umane, publicado na semana passada, o orçamento da saúde projetado para 2023 terá a redução de R$ 3,3 bilhões, comparado com o ano anterior.
O corte atinge 12 programas do Ministério da Saúde, sendo que o do "Programa de Prevenção, Controle e Tratamento de HIV/Aids, outras Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites Virais" é o terceiro maior, encolhendo em R$ 407 milhões de reais (17,4%).
Um corte desse tipo no orçamento da saúde, sobretudo no meio da campanha eleitoral, nos mostra a importância dada pela atual gestão federal para a saúde pública brasileira. O descaso fica ainda mais escancarado quando vemos que os dois programas mais afetados foram o de saúde da população indígena (R$ 910 milhões) e o de residência médica (R$ 922 milhões).
A opinião do atual Presidente da República sobre o investimento em prevenção e tratamento do HIV/Aids já é bem conhecida, mas devo lembrá-lo de que existe na constituição federal a lei 9.313, de novembro de 1996, assinada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Essa lei obriga o estado brasileiro a garantir o cuidado e o tratamento antirretroviral gratuitamente para todas as pessoas que vivem com HIV no Brasil. E que, a não ser que essa lei seja revogada pelo Congresso Nacional, o orçamento para o programa de HIV/Aids não pode ser cortado de maneira irresponsável.
Falando em responsabilidade, não posso deixar de lembrá-los também que em maio de 2022 completaram-se 15 anos que, para fazer com que o orçamento brasileiro fosse suficiente para custear o tratamento antirretroviral para todos os brasileiros infectados com HIV, o então presidente Lula determinou a licença compulsória (quebra da patente) do antirretroviral efavirenz. Até hoje esse feito é tido mundialmente como um exemplo de posicionamento de um chefe de estado perante a epidemia de HIV/Aids.
Estamos hoje a duas semanas do segundo turno de uma eleição em que o Brasil deverá escolher entre um candidato que agiu para fortalecer o programa brasileiro de HIV/Aids e outro que cortou deliberadamente o seu orçamento.
O Unaids está certo em nos alertar que se não resgatarmos logo o protagonismo do programa brasileiro de HIV/Aids, jogaremos fora as nossas vitórias conquistadas nas últimas décadas e teremos que enfrentar o indesejado recrudescimento da epidemia de HIV/Aids no país.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.