Estudo europeu mostra que ISTs aumentam antes do início da PrEP, não depois
Qualquer pessoa que estude ou trabalhe com a PrEP (profilaxia pré-exposição ao HIV) está cansado de ouvir a pergunta "A PrEP só protege do HIV. E as outras ISTs?".
Sim, a PrEP só protege (e muito bem) do HIV. Contra as outras ISTs, o que ajuda na prevenção é o uso do preservativo, o rastreamento dos indivíduos assintomáticos, o tratamento das infecções diagnosticadas, o uso da DoxiPEP e, quando disponível, a vacinação.
E isso não deve ser visto como um defeito da PrEP. Afinal, o seguimento longitudinal proposto para uma pessoa que decide iniciar a PrEP é uma potente ferramenta de vinculação a todos estes métodos de prevenção eficazes contra as outras ISTs.
Existe também uma outra afirmação que no passado até já foi mais recorrente, mas que agora anda circulando pouco nas redes sociais ou nas mesas de bar. Aquela que coloca na PrEP a culpa do aumento das outras ISTs.
Eis que, quando ninguém esperava, um estudo dinamarquês, publicado no final de março, chegou para reacender esse debate por concluir que o aumento das ISTs bacterianas na vida de um indivíduo ocorre antes dele iniciar a PrEP, e não depois.
Vem comigo que eu te explico. O raciocínio preponderante até então usava como argumento o conceito da "Compensação de Risco", que, de maneira bem simplificada, poderia ser definido como a desinibição de comportamentos de maior vulnerabilidade provocada pela diminuição da percepção desse risco.
Segundo esse raciocínio, pessoas em uso de PrEP teriam menos medo de se infectarem com HIV e por isso se comportariam de forma menos cautelosa, usando, por exemplo, o preservativo com menor frequência em suas relações ou aumentando o número de parcerias sexuais. Assim, as taxas de incidência das outras ISTs acabariam aumentando.
Esse raciocínio, ainda que plausível e intuitivo, não havia encontrado embasamento científico em nenhum estudo, e ainda por cima atuava como um obstáculo para a expansão do acesso à PrEP pelo mundo.
Uma vez que a aferição do comportamento sexual de um indivíduo sabidamente está sujeita a uma série de vieses, os estudos que até hoje tinham se dedicado a entender essa questão preferiam a aferição de dados mais objetivos, como as taxas de incidência de sífilis, gonorreia e clamídia.
Até aqui, os resultados dos trabalhos que seguiram por esse caminho foram contraditórios, às vezes encontrando e às vezes não alguma associação entre o uso da PrEP, ocorrência de compensação de risco e o aumento da incidência das ISTs bacterianas.
Um dos motivos dessa divergência está no fato de que, com a rotina de acompanhamento da PrEP, sempre ocorre o aumento significativo da frequência de testagens para as outras ISTs. Assim, um eventual aumento nas taxas poderia não significar o aumento da incidência das ISTs (novos casos), mas uma melhora no diagnóstico das ISTs existentes, sobretudo daquelas assintomáticas.
De fato, desde o início do século, e, portanto, desde muito antes da chegada da PrEP, o mundo tem testemunhado uma profunda transformação da forma como a população desenvolve sua vida sexual. Ao longo desse período, isso certamente contribuiu com o aumento progressivo dos casos de ISTs bacterianas.
Por isso, diante das transformações na sociedade e das mudanças na frequência de testagens para as ISTs, só seria possível estabelecer uma relação de causalidade entre a PrEP e aumento de ISTs se tivéssemos para analisar um banco de dados extenso e completo sobre a saúde sexual de um grande número de indivíduos, desde muito antes da chegada da PrEP até bem depois disso.
Foi isso que os pesquisadores dinamarqueses fizeram.
A Dinamarca é uma referência em estudos de saúde populacional devido à robustez e consistência dos dados de saúde individual coletados em seus bancos de dados de saúde pública. Lá, cada cidadão tem um registro único linkado com um prontuário eletrônico de abrangência nacional, em que se armazenam todos os dados de saúde como consultas, diagnósticos, resultados de exames e medicamentos usados.
No estudo publicado recentemente, foram avaliados a frequência e os resultados de exames de sífilis, gonorreia e clamídia de todos os 1.326 usuários de PrEP da região da capital do país, desde antes do início da PrEP até o seu término, para então comparar as taxas de incidência dos períodos pré-PrEP e pós-PrEP.
Como resultado, os pesquisadores demonstraram que durante o período estudado houve sim entre os participantes incluídos um aumento progressivo de 35% no risco de contrair uma IST bacteriana, mas surpreendentemente esse risco começa a aumentar entre 10 e 20 semanas antes desses indivíduos iniciarem o uso da PrEP.
Em outras palavras, a desinibição de comportamentos sexuais mais arriscados não ocorreu por causa do uso da PrEP. Ao contrário, essas pessoas buscaram PrEP porque se perceberam mais vulneráveis a ISTs.
Ao mudar a interpretação dessa sequência dos fatos, o estudo derruba de forma inédita o principal argumento moralista de que a implementação da PrEP seria danosa para a saúde pública por aumentar as outras ISTs.
E, na mesma tacada, se torna um forte apelo para que as políticas públicas contemplem os indivíduos vulneráveis com todas as estratégias com potencial de melhora da prevenção contra o HIV e ISTs, sejam elas quais forem.
Entender quem veio antes, se foi o ovo ou a galinha, muitas vezes pode não ter nenhuma implicação prática na vida das pessoas. Mas nesse caso especificamente da PrEP e das ISTs, a não disponibilização de opções eficientes de métodos de prevenção poderia causar o significativo aumento nas infecções por HIV.
Com a publicação do estudo dinamarquês, abre-se um raciocínio divergente e até então não cogitado de entendimento da dinâmica das ISTs bacterianas. Um raciocínio desprovido de moralismo que se embasa em dados concretos de saúde pública.
Resta agora saber se esse é um fenômeno específico daquele país ou se pode ser extrapolado para o resto do mundo. Entendido isso, não restará mais nenhum argumento contra a expansão da PrEP.
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