Covid-19: falta de comoção é consequência da "invisibilidade" de quem morre
A epidemia do coronavírus (Sars-Cov-2) já abreviou a história de mais de 115 mil pessoas no país. Os números crescem a cada dia, mas ainda há gente que não acredita na gravidade da pandemia e muito menos que a covid-19 exista! Mas e todas essas mortes?
Recentemente, ouvi em um programa de TV algo que tentava explicar a ausência de comoção diante de tantas histórias que terminaram cedo demais. O motivo encontrado foi que, como as mortes vão ocorrendo dia após dia, a comoção vai sendo "diluída", até que as pessoas deixem de notá-la. É diferente de quando ocorre um desastre com várias mortes ao mesmo tempo, produzindo um impacto maior no imaginário das populações. Essa era a explicação. Mas perdemos desde março uma média de mil vidas por dia! Será mesmo que a justificativa para a falta de comoção é somente o fato de ela ter se "diluído"? Acredito que não.
Atrevo-me a dizer que se trata de quem está morrendo nessa pandemia. A maioria dessas histórias interrompidas aconteceram nas favelas e periferias do nosso país. Histórias que sempre foram caracterizadas pela invisibilidade e abandono do Estado. Estas pessoas estão abandonadas à própria sorte há tempos. A pandemia só fez com que isso fosse mais evidente. No entanto, nada mudou na forma como estes cidadãos são tratados pelo Estado. Passaram de invisíveis a números em uma estatística. Qual é a resposta a isso: um sonoro "e daí?".
Para refutar a minha afirmação, você pode dizer que a infecção por covid-19 é democrática, não distingue sexo, raça/cor, religião, condição social. Mas você não pode negar que as mortes produzidas pela doença distinguem um tipo específico de população: uma população com sexo, raça/cor e condição social bem estabelecidas. A ausência de comoção é a sequência desta invisibilidade, que marginaliza os corpos e banaliza a morte destes indivíduos.
Nas favelas e periferias, onde recomendações básicas para prevenção do contágio são muitas vezes impossíveis de realizar - lavar as mãos com frequência, por exemplo -, é a comunidade que se organiza para tentar proteger os seus, proporcionando informação em meio à outra epidemia (a da desinformação e das fake news) e auxiliando aos mais necessitados.
Nosso desastre só não é maior devido à ação de lideranças comunitárias e a capacidade destas comunidades de se autorregular, aprendida após anos de abandono. Nossas periferias não aceitam ter que pagar o maior preço de todos —a vida — no enfrentamento desta crise sanitária. Mas estão sozinhas, como sempre estiveram.
A ajuda de mutirões e organizações é sazonal e não tem o alcance necessário. Políticas públicas de proteção são urgentes, não apenas durante a pandemia, mas de forma perene.
O maior medo destas pessoas é de morrer por algo muito mais palpável que a infecção pelo coronavírus: a fome. Ainda que sair para buscar o sustento da família signifique maior risco de infecção, a máxima "fique em casa" é mais assustadora e carregada de incertezas
Melhor proteger-se de um inimigo conhecido e doloroso, a fome, do que da possibilidade de adoecer por causa de um vírus. Aqui, a concepção de "serviço essencial" toma uma nova conotação: tudo o que garante a sobrevivência é essencial! E, na luta por seguir vivendo, vemos mais e mais histórias terminando; mais famílias enlutadas e menos responsabilidade do Estado por tudo isso.
Saúde é muito mais que aumentar o número de leitos de UTI, de hospitais, de testagem (ainda que isso seja fundamental). Saúde é proporcionar meios para que a vida se preserve. É um direito do povo e dever do Estado! E por que este dever só se aplica a uma parcela da população?
Não dá para simplesmente "tocar a vida" enquanto há tanta gente perdendo a sua!
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