Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Quem tem fome tem pressa: se você pode ajudar, agora é hora de fazer isso
Atendi recentemente a uma gestante na UBS (Unidade Básica de Saúde) onde trabalho, que está fazendo acompanhamento de pré-natal. Ela aparentava estar bem, mas as aparências sempre enganam. Ao iniciar o exame, percebo que havia perdido quase 3 kg nos últimos 15 dias. Situações de perda de peso são bastante comuns no início da gestação (primeiro trimestre), quando os enjoos são predominantes, gerando inapetência. Não era esse o caso.
Essa gestante não estava enjoada e muito menos com falta de apetite. Também não estava fazendo uma dieta diferenciada por algum problema de saúde ou para evitar ganho de peso excessivo.
O problema dessa paciente —e de muitos outros que atendemos diariamente nas UBS— é algo tão doloroso e devastador quanto a pandemia que estamos vivendo. É algo que conhecemos há muito tempo e, ainda assim, não conseguimos (ou não tentamos o suficiente) erradicar: a fome.
Com outras cinco bocas igualmente necessitadas, sendo quatro crianças (dois filhos e dois irmãos), essa gestante não consegue realizar mais que uma refeição ao dia —isso quando consegue. Seu esposo, costureiro, está sem salário fixo há mais de um ano. A família veio da Bolívia há cinco anos, buscando uma vida melhor. Estão sozinhos e hoje, mais vulneráveis que seus parentes que continuaram em seu país de origem.
Essa é a história de uma família imigrante, mas poderia ser a de muitas famílias nas periferias das grandes cidades. A procedência é o que menos importa aqui, pois a fome é igual para todos.
Como o corpo desta grávida, que mobiliza os escassos recursos (nutrientes) para a manutenção da saúde do feto, as periferias resistiram. Dividindo o que tinham e contando com a solidariedade de muita gente boa, puderam manter a faina de sobreviver, um dia após o outro. Porém, como acontecerá com essa futura mãe se nada for feito —e já está acontecendo nas periferias—, uma hora os recursos se acabam: nada dividido por nada é nada!
Escolhi ser médico para poder ajudar as pessoas, como fui ajudado em muitos momentos da minha vida. Minha primeira lição de solidariedade veio do meu irmão, que guardava a merenda da escola nos bolsos, para dividir comigo ao chegar em casa.
Apesar de ser bem pequeno, lembro-me bem da sensação de vazio dolorosa e da busca inútil por algo que não estava nos armários nem na geladeira. Lembro-me do olhar angustiado e impotente de minha mãe. E é angustiante constatar que ainda vejo aquele mesmo olhar, cada dia mais frequente e em mais pessoas, após tantos anos.
Aprendi com ambos que ser solidário não significa de modo algum só distribuir o que me sobra, mas sim oferecer o que falta ao meu próximo. Não desviar o olhar daquilo que me incomoda. Que a dor não precisa ser minha para doer.
Nos últimos três meses do ano passado, quando o auxílio emergencial foi reduzido pela metade, mais da metade dos domicílios brasileiros (55,2%) apresentava algum grau de insegurança alimentar, que é quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos. Destes, 9% vivenciaram insegurança alimentar grave, o que significa que 19 milhões de brasileiros passaram fome. Os dados são de um levantamento divulgado pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de ActionAid Brasil, FES Brasil e Oxfam Brasil.
Utilizando uma frase que ouvi certa vez (infelizmente não conheço o autor): "não olhe para a fome apenas com cara feia. Isso só irá fazê-la mostrar a língua". Saber que a fome está aí e que estamos caminhando a passos largos de volta ao Mapa da Fome não muda nada. É preciso agir.
Se você pode ajudar, faça isso agora. Não mais tarde ou amanhã. Quem tem fome tem pressa.
Combata a fome no Brasil: veja como ajudar pessoas a comer e sobreviver na pandemia
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