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Vamos Falar Sobre o Luto?

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quanto dura um luto? O tempo vai diminuir a sua dor?

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Imagem: Unsplash

Colunista do UOL

13/10/2022 04h00

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O tempo é mesmo a cura de todos os males? Ele vai sanar meu sofrimento? Amenizar a saudade? O pior é o primeiro ano? Vai passar? Quando?

Quando alguém está imerso na dor de uma perda, perguntas como essas são o pedido de socorro possível. Diante da irreversibilidade da morte, apela-se ao futuro, à esperança de que amanhã vai ser melhor. Como aquele remédio que promete o efeito analgésico em 15 ou 30 minutos, a gente quer saber depois de quantas doses/dias/meses vamos precisar ainda. Todas essas questões sobre a duração do luto são naturais e compreensíveis. Assim como a falta de uma resposta certa para elas.

Para discutir o efeito do tempo —esse que, como disse Caetano Veloso, é um dos deuses mais lindos— na elaboração do luto, conversei com a psicoterapeuta Maria Helena Franco, uma das fundadoras e coordenadora do Lelu (Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto da PUC-SP), superfera no tema.

"Gosto de dizer que é melhor a gente não pensar em tempo como sendo o regulador do luto", diz a psicoterapeuta. "Mas também sei que é interessante para a pessoa que o vive a ideia de que vai terminar em algum momento. O prazo pode ser uma luz no fim do túnel. A questão, porém, é que essa mesma ideia de que há um tempo determinado pode sugerir que alguém está 'fora da norma'. 'Ah, está demorando muito, deve haver algo de errado comigo'. Não necessariamente", diz.

"Eu sempre digo que há duas palavras que deveriam ser proibidas de serem ditas (ou pensadas) por ou para alguém enlutado: já e ainda. 'Você JÁ começou a sair de casa?', 'Você AINDA não sai de casa?'. Essas palavras contêm julgamento, de fora ou de dentro. Não use, não pense, não diga a ninguém."

É comum que se considere que o primeiro ano é o mais difícil do luto. Assim como o tempo, esse é um conceito relativo. Digo, por experiência própria, que é no primeiro ano, esse mais desafiador, que a gente se sente mais amparada, menos solitária.

A psicoterapeuta Maria Helena me explica que o primeiro ano é particularmente difícil pelo fato de ele trazer "a primeira vez". Em todas as passagens de datas significativas (aniversários, festas, celebrações) vive-se uma experiência "pela primeira vez" sem a pessoa amada. Mas isso não significa que os próximos anos, a segunda ou a terceira vez, sejam mais fáceis ou indolores. E, pode ter certeza, haverá menos solidariedade disponível.

Se não há um tempo ou prazo comum em um processo de luto, como saber se o seu, ou de alguém próximo a você, poderia estar sendo melhor elaborado? "Um sinal de que alguém está com dificuldade de viver o luto é o conceito de 'perda de liberdade'", diz Maria Helena. "É quando a própria pessoa não se dá a liberdade de dar risada, encontrar amigos, espairecer. Como se, ao sair do sofrimento, ela estivesse cometendo uma traição com quem morreu."

É difícil diferenciar o que é autocobrança ou imposição cultural. Em todos os manuais de saúde mental há indicadores que pretendem definir padrões sobre duração e comportamentos desejáveis. Através de análises de sintomas, diagnosticam-se supostos transtornos. Autoridades no assunto, como Maria Helena, não costumam se balizar por esses guias.

"A gente já não fala mais em luto patológico porque é uma forma muito restritiva de descrever um processo. Para que servem esses códigos? Para dizer que a pessoa está vivendo um luto de uma forma que não era para viver? O tempo, por exemplo, é apenas um dado, há muitos outros fatores que facilitam ou complicam", diz.

Na clínica, o que a terapeuta vai observar é o cenário macro: ela tem uma rede de apoio? Tem para onde correr? Como era a relação com a pessoa falecida? A morte aconteceu em um momento de conflito com ela? "Há uma miríade de aspectos que devem ser levados em conta em conta. Eu vou olhar para a experiência do indivíduo e o que ele me conta", diz a psicoterapeuta.

A singularidade é o ponto-chave. Mas também reconhecemos algumas situações comuns: a sociedade, de forma geral, tem pouca condescendência com os processos mais longos. Dito de forma bem direta: a gente não tem paciência com o sofrimento alheio.

Pergunto à Maria Helena por que as pessoas, mesmo as mais próximas e amigas, querem tirar da frente o luto alheio. "A dor do outro é um espelho da minha dor. Ela me lembra constantemente do risco de vir a estar no seu lugar. Dependendo do grau de proximidade com o enlutado, pode também significar a sua incapacidade de aliviá-la, de fazer com que ela ou ele fique bem."

O escritor espanhol Javier Marías descreve muito bem essa realidade neste trecho de seu livro "Os Enamoramentos":

"É outro dos inconvenientes de sofrer uma desgraça: para quem a sofre, os efeitos duram muito mais do que dura a paciência dos que se mostram dispostos a escutá-lo e acompanhá-lo, a incondicionalidade nunca é muito longa se tingida de monotonia. E assim, mais dia menos dia, a pessoa triste fica sozinha quando ainda não terminou seu luto ou já não lhe consentem falar mais do que ainda é seu único mundo, porque esse mundo de angústia resulta insuportável e afugenta (...)"

O processo do luto, assim como a reação de cada um à mesma situação de perda ou dor, são pessoais e intransferíveis. Alguns lidam melhor que outros com as adversidades.

Existem estudos que apontam fatores genéticos que predispõem algumas pessoas para a felicidade, mesmo que esse conceito (o de felicidade) seja ambíguo. "Podem existir indivíduos com mais ou menos vocação para a felicidade, mas o que posso afirmar é que pessoas criadas em ambientes geradores de maior confiança têm melhor preparo para fazer boas escolhas. Alguém que cresceu em segurança afetiva e se entende como amado deseja coisas boas e pode ser mais resiliente no trato com a dor. Se eu cresci num ambiente em que me impediram de ser feliz, tendo a fazer escolhas nessa direção, a direção do sacrifício", diz Maria Helena.

Há ainda outros motivos para alguém prolongar o seu estado de sofrimento. "A dor pode ser considerada um vínculo com o ser amado. Eu pergunto ao enlutado como ele fica sem a dor e a resposta é: eu fico sem ele ou ela. A dor, nesse caso, indica que ali existiu um amor. A pessoa monta um cenário em que não pode abrir mão dela. Essa é uma crença automutiladora", afirma.

Finalmente, pergunto se o tempo tem mesmo o poder de diminuir o sofrimento: "Eu não acredito que o tempo cure todos os males. Acredito, sim, em como se passa esse tempo. Pode ser um tempo congelado, com a pessoa enclausurada em si mesma. Por isso, quando ouço falar que o tempo vai te ajudar, o tempo cura tudo, eu já alerto: não é bem assim, vamos conversar melhor."

Quer ler mais sobre o tema? Vai lá no site www.vamosfalarsobreoluto.com.br