Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Crime e castigo: o papel da luta por justiça no processo de luto
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
"Tudo o que eu espero é justiça", disse a mãe de uma das alunas mortas no ataque à escola de Aracruz, no Espírito Santo, no final do ano passado.
"Saiu um peso dos meus ombros", declarou a mãe de outra jovem vítima de assassinato, em novembro passado, em Idaho, Estados Unidos, assim que o provável autor do crime foi preso.
O que essas mães enlutadas expressaram é a reação comum de tantos pais, familiares e amigos que perdem pessoas amadas em uma ação violenta. A dor da perda se associa a um profundo sentimento de injustiça que deve ser reparado com a punição do responsável pela morte.
Mas o que a busca por justiça e a sua concretização (ou não) impactam no processo de luto dessas famílias? Será que existe conforto nessa luta? E um merecido alívio com seu desfecho?
Para nos ajudar a responder essas perguntas, a psicóloga Gabriela Casellato, especialista no tema, lembra, primeiro, que o luto é um processo adaptativo que envolve a assimilação da ausência de quem partiu e a compreensão do que aconteceu. Depende de uma adaptação social ao seu novo lugar no mundo, sua nova identidade, ao ajustamento físico, psíquico e espiritual.
"Cada pessoa que vive uma perda tem um processo adaptativo muito próprio e singular. E um dos aspectos que envolvem a construção de seu luto é a questão da narrativa", explica. "Depende de como cada um lida com a história da vida e da morte", diz.
Ela dá um exemplo de como se valoriza a morte da pessoa amada: se o funeral do seu ente querido está repleto de amigos que foram homenageá-lo, o enlutado gera ali uma narrativa de pertencimento, de amor e reconhecimento, o que traz uma sensação de conforto. "É como se ele pensasse: estou sofrendo por algo que faz sentido, porque todo mundo reconhece, valoriza e sente também."
O contrário acontece quando a injustiça se faz: sem justiça, sente-se que aquilo pelo que se está sofrendo não é respeitado, não é valorizado. "Isso não só é uma violência secundária ao luto como também uma sobrecarga psicológica que muitas vezes impede o processo adaptativo", diz Casellato. "No entanto, o que pode acontecer, é que a pessoa fica tão focada na busca por justiça que todos os outros aspectos que precisam ser trabalhados no luto ficam em segundo plano."
Segundo a terapeuta, não dá para afirmar que isso é sempre assim nem que as consequências serão negativas ou positivas. Vamos lembrar sempre da singularidade do luto e que, independentemente da forma como a pessoa morreu ou foi morta, o sofrimento e o desenvolvimento do processo estão ligados ao vinculo e ao papel que aquela pessoa tinha na vida de quem ficou. O tipo de vínculo também interfere na busca por justiça.
"Vamos imaginar que o enlutado dependesse do ente que morreu. Nesse caso, coloca-se no luto uma função. A briga pela justiça pode envolver uma indenização financeira que o conecta com a pessoa morta e isso é de alguma forma um fator de paralisação do processo de luto. Não ajuda o enlutado ficar aprisionado nessa busca que envolve raiva, culpa ou vitimização", afirma.
Por outro lado, o senso de injustiça acarreta sofrimento e é sempre um fator agravante. "A gente, portanto, não deve generalizar, temos que entender como a busca impacta cada um."
Quando a mãe de uma das crianças mortas no ataque à escola do Espírito Santo diz que tudo o que ela deseja agora é justiça, o que devemos pensar não é no que ela vai sentir quando a justiça for alcançada, mas o que ela sente agora, ao fazer essa declaração. Provavelmente é uma mistura de emoções que passam pelo sentimento de desrespeito, do medo da impunidade, da sensação de desproteção.
Pergunto a ela se a única justiça possível envolve punição e condenação. Em um excelente podcast sobre o tema, Crime e Castigo (recomendo muito!), discute-se, através do relato de crimes reais, a relação entre crime, luto e a justiça punitiva ou restaurativa. Pergunto a Gabriela Casellato se é possível elaborar o luto sem desejar a pena máxima a quem cometeu o crime.
"Tem gente que passa por violências mas tem estrutura emocional, autoestima, suporte, retaguarda, às vezes de ordem espiritual, que favorecem a compreensão e a aceitação de uma justiça não punitiva, mas restaurativa. Outros não têm esse elemento, e menos recursos para chegar nessa possibilidade. Quanto maior a fragilidade psicológica em torno do luto e da vida, menos chance de um caminho restaurativo", diz.
A forma como o processo de busca por justiça é manejado depende de muitos fatores: de como é o enlutado, como era a pessoa que perdeu, o contexto da injustiça, como ele foi cuidado durante o processo de justiça, se ele foi respeitado ou não. Tem famílias, tem pais, que passam a ser reconhecidos socialmente ao longo de sua batalha por justiça.
Transformam-se em protagonistas de uma causa, o que gera uma identidade social. Não se pode dizer que isso seja bom ou ruim para a elaboração do luto. Podemos apenas constatar que é um fato. De longe, pode-se dizer que um personagem assim ganha uma causa na vida. "Quando você faz alguma coisa, sai da vitimização para o protagonismo. E esse protagonismo tende a incrementar a autoestima, a confiança, a resiliência."
Quanto menos o enlutado se sentir engolido pela dor, mais ele consegue se ajustar a uma nova condição.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.