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Onde mora uma pessoa que morre?

Natureza morta de Floris van Dyck - DeAgostini/Getty Images
Natureza morta de Floris van Dyck Imagem: DeAgostini/Getty Images

Colunista do UOL

19/01/2023 04h00

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Poucos dias antes da morte de minha tia Magda, sabendo que sua partida estava próxima, fui visita-la para me despedir. No trajeto da porta de entrada até o quarto dela (ambiente até então desconhecido para mim) pude ver o quanto sua grande biblioteca fora invadindo, ao longo dos anos, outras partes da casa. Na sala, nos corredores e no quarto, estantes recheadas de livros —muitos deles escondidos por trás de outros livros— me recontavam o óbvio: o quanto minha tia amava as letras e o conhecimento.

Magda Becker Soares, professora emérita da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), falecida aos 90 anos de idade na madrugada do primeiro dia de 2023, entra para a história como pesquisadora referência em alfabetização e letramento, além de defensora incansável do ensino público de qualidade.

Uma amostra do seu engajamento: já aposentada e até pouco tempo antes de morrer, frequentou uma escola pública em Lagoa Santa, Minas Gerais, para ajudar os professores a ensinar as crianças a ler.

Sua importância é tamanha que o novo ministro da Educação, Camilo Santana, pediu uma salva de palmas em homenagem a ela na cerimônia em que tomou posse.

De agora em diante, cada vez que entrar numa biblioteca, lembrarei da minha tia, assim como já me lembro do meu avô, de quem ela e meu pai herdaram o gosto pela leitura.

Vovô Peixim e tia Magda moram nos livros, meu avô Getúlio num canivete suíço que ele não tirava do bolso e, claro, nas laranjas que me lembram as incontáveis laranjas que vi esse canivete descascar.

Minha avó Neném habita as igrejas, as mãos em oração e também o terço que ela carregava para cá e para lá em suas preces diárias.

Nona, minha avó paterna, reside num broche que guardo com tanto cuidado, e em tudo o mais que me traz beleza e elegância, e também em cada alemão ou alemã que encontro pela vida e a quem insisto em dizer: "A minha avó era filha e neta de alemães". (Apesar do apelido italiano, temos ascendência germânica; eu digo "temos" porque, por conta da Nona, eu me sinto um pouquinho alemã também).

Por fim, minha tia Irisinha aparece nos cafés servidos com bolo, nos tabuleiros de cocada, nas empadinhas, puxando as memórias de incontáveis delícias que ela, cozinheira de mão cheia, preparava e servia a cada encontro, sempre com tanto capricho e amor. Também a revejo em cada risada solta e contagiante que, vez ou outra, atravessa o meu dia para ilumina-lo, como o riso dela.

À medida que os amores vão partindo, consigo entender melhor qual é a graça, ou o sentido, dos quadros de natureza morta, assim chamados por retratarem objetos inanimados.

Os pertences daqueles que nos deixam tornam-se não apenas marca de um abandono, ficam principalmente sagrados por guardar a presença de uma ausência gigantesca. Talvez por isso imediatamente após a morte eles sejam tristes como um relógio parado: testemunham o congelamento da vida, não só a do falecido mas também a nossa, que junto com a dele se interrompe, ficando em suspenso.

E então chega o tempo da pressa, em que o mundo diariamente nos fere à medida que insiste em nos chamar de volta à rotina. Resignados, seguimos em frente levando conosco a saudade e os objetos órfãos, já "descongelando" e ganhando novo sentido, nos trazendo cada vez mais vida e menos morte. Até um dia ganhar morada nos porta-joias (no sentido literal ou figurado, ou seja, no melhor canto da memória e do coração).

Fiz questão de entrar na biblioteca da minha tia para, ali, me despedir novamente. Embora ela estivesse um andar acima, no quarto, eu também pude vê-la nas estantes, no caderno sobre a mesa, na caneta esquecida sobre a página aberta, nas palavras escritas numa folha solta que parecia aguardar outras palavras, e também nos livros empilhados e marcados com papeizinhos indicando passagens a serem revistas, e ainda nas frases e fotos coladas nas paredes trazendo de volta à vida os intelectuais que mais a inspiraram.

Há tanto dela no mundo... Obrigada por tudo, Tia Magda!