Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Dar 'nova vida' aos pertences de um ente querido pode fazer bem
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"Roupas que já não têm músculos, mas ainda têm alma." É assim que o francês Olivier Saillard, especialista em história da arte e ex-diretor do Museu de Moda de Paris (Musée Galliera), fala sobre as roupas de sua mãe, Renée, falecida há dois anos.
Na manhã desta terça-feira (24), ultimo dia da Fashion Week masculina parisiense, ele apresentou uma emocionante coleção com 30 looks feitos a partir de peças que compunham o armário de Renée, transformadas através de técnicas de alta-costura.
"Encontrei no sótão da casa dela gerações e gerações de casacos", contou o estilista em um texto lido durante o desfile-performance, "vestes modestas e humildes que, precisamente por serem assim, revelam uma forma de aristocracia nos cuidados com que foram tratadas por minha mãe. Nelas, os desgastes viraram bordados".
Dar um destino aos pertences de uma pessoa querida é uma tarefa não apenas prática mas também emocional (falamos sobre isso em nossa última coluna) que cada pessoa vive à sua maneira e no seu tempo. Recorrer à criatividade para processar a dor da perda (e, de alguma forma, torná-la sublime) é um recurso que pode se revelar valioso.
(Freud usou o termo "sublimação" para descrever um tipo de mecanismo de defesa mais evoluído, através do qual pensamentos e sentimentos negativos seriam transformados em algo que, de alguma forma, traria ou representaria positividade.)
Ao escolher dar nova vida às roupas da mãe, honrando o cuidado com que ela as tratava e transformando-as em peças carregadas de beleza (e de futuro!) Olivier Saillard fez bem não apenas a si mesmo, mas a todas as pessoas que assistiram a sua performance e puderam sair dela reconectados à sua própria mortalidade —afinal, lembrar que um dia vamos embora nos faz valorizar mais nosso tempo aqui.
As composições criadas a partir das "roupas desprovidas de músculos", montadas pelo próprio estilista sobre o corpo de uma única modelo, me fizeram pensar na famosa lei do químico Antoine Lavoisier segundo a qual "na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma" (Olivier Saillard, aliás, é ativista da reciclagem de moda através de seu projeto Moda Povera.)
O que é a natureza senão vida? O que são vida e natureza senão essa mesma substância da qual somos humildes manifestações, assim como também o são aqueles que vieram antes e os que ainda virão?
A saudade, as memórias, como tudo o mais, se transformarão. Nunca deixarão de doer, mas como o tempo podem se tornar uma "dor gostosinha", que assim é por ser feita tanto dor quanto amor.
Àqueles que hoje sofrem, desejo que todas as suas dores possam, um dia, se tornar sublimes e desfilar por aí espalhando amor e beleza, como as de Olivier Saillard, resignificadas em homenagem à mulher que, na descrição apaixonada do filho, foi "uma russa com aquela beleza típica dos anos 1940, uma personalidade particular que decidiu ser taxista para garantir sua liberdade".
Como inspiração, deixo aqui um poema do estilista, tão triste quanto belo, escrito a partir do mergulho no armário materno:
Os chapéus acabam decapitados
Os vestidos de noiva terminam solteiros
O branco vira cinza
As calças terminam aos pés
As camisas abandonadas
Os cintos esquecidos
As calcinhas, as meias-calças se dobram
As meias sem pés
Os cabelos desgrenhados
A pele descasca...
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