Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Diagnosticada com câncer aos 28, AnaMi ensina sobre vida na impermanência
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AnaMi acaba de partir e levar consigo 40 anos de existência, 12 deles desenganada com câncer metastático. Deixa para nós um exemplo de resiliência e esperança, jornada relatada em seus dois livros: "Enquanto Eu Respirar" (2019) e "Vida Inteira" (2020), publicados pela Editora Sextante.
Antes de partir, deixou um terceiro livro pronto, que também será lançado pela editora. Além dos livros, AnaMi tinha com Ana Claudia Quintana Arantes o perfil @paliativas no Instagram, hoje com mais de 200 mil seguidores, tantos deles ajudados por sua infinita inspiração sobre a finitude e a liberdade de viver a vida até o último suspiro.
Este é um texto sobre seu segundo livro, "Vida Inteira", que defende a vida acima de todas as circunstâncias. Como fala o rabino e escritor Nilton Bonder em seu prefácio: o trabalho da AnaMi é um antídoto à morte decretada e antecipada. A vida é o enquanto, o agora e nos ensina que é possível nos sentirmos em casa na vida, pelo simples fato de estarmos vivos.
Porém quando a gente se encontra na situação de desenganados, é preciso percorrer toda uma jornada para se apropriar da vida que nos resta. O percurso da AnaMi passou por vários momentos, e o primeiro deles foi o de se identificar com a dor, sentir-se no fundo da caverna e apenas sobreviver. Mas foi no encontro com sua amiga Renata, que, como ela, convivia com um câncer metastático, que ela conseguiu sair dessa posição.
A autora conta que as duas juntas aprenderam a dançar "com o tempo, com as possibilidades, com as estatísticas, com o medo, com a impermanência". Além de, juntas, aprenderem a falar e se relacionar com o câncer e a ideia da morte. Foi com a Renata que a Ana Michelle lançou o perfil @paliativas, que depois passou a ter a preciosa colaboração e presença da Ana Claudia.
AnaMi estava determinada a mergulhar e impulsionar os cuidados paliativos para além do fundo dos corredores dos hospitais. Essa é uma abordagem que se dedica a aliviar o sofrimento de uma pessoa que recebe o diagnóstico de uma doença grave, incurável e que ameaça a continuidade da vida.
O grande aprendizado é que as pessoas que estão morrendo estão vivas e querem, mais do que nunca, viver. Elas precisam de ajuda para aliviar seus sofrimentos, que não se limitam ao físico. Tudo o contrário de "não há mais nada a ser feito", frase que vem junto com um doente terminal. Por isso a AnaMi, a Renata e a Ana Claudia acreditam que "cuidados paliativos" deveria ser matéria de qualquer formação ligada à medicina.
Renata partiu antes do lançamento do primeiro livro de AnaMi, que dedicou seu texto a amiga.
AnaMi logo aprendeu que o diagnóstico de uma doença grave como o câncer vem junto com a necessidade premente de encontrar a cura. Em nome disso, rezas, comprimidos, alimentos, óleos, curandeiros, sucos, velas e meditações são métodos e dicas infalíveis que aparecem de todos os cantos para a cura.
Já a medicina tradicional usa mesmo é a frieza no tratamento dessas doenças. Muitas reflexões do livro falam sobre a necessidade da humanização dos tratamentos e dos hospitais. Muitas vezes os doentes se sentem sozinhos em busca da vida que lhes resta. A medicina se afeiçoa com a doença, mas o doente quer mesmo é viver.
Desenganadas são aquelas pessoas que deixaram de ser enganadas e que agora são lúcidas e conscientes de que podem não estar curadas, mas estão vivas, e pela vida vale a pena viver. Ana Claudia Quintana Arantes
A jornada positiva da AnaMi pela vida começou quando leu o livro "Anticâncer", uma espécie de bíblia para quem tem a doença, escrito pelo psiquiatra David Servan-Schreiber, também um paciente de câncer terminal. O livro ressalta que, enquanto a doença não passa rente a nós, a vida nos parece infinita e acreditamos que sempre haverá tempo para lutarmos pela felicidade, adiando para o dia seguinte a busca pelo essencial. Esse é o convite do livro "Vida Inteira" em cada página: buscar a vida todos os dias, manter a cabeça no presente, tirar o melhor dele e afastar os medos do futuro.
O câncer é muito mais emoção do que genes. Segundo David Servan-Schreiber, determinados sentimentos são capazes de interferir no funcionamento correto das células imunológicas, podendo causar, entre outras coisas, o câncer. As sugestões de tratamento e cura do livro "Anticâncer" passam por um caminho muito simples e poderoso, bem diferente dos malabarismos de cura sempre sugeridos para quem tem a doença: dieta equilibrada, exercícios físicos e lidar melhor com as emoções. Aquilo que todos deveríamos fazer desde hoje, com ou sem câncer.
AnaMi seguiu seus preceitos o quanto pode, mas, mais do que tudo, decidiu trabalhar sua dor e sentimento de impotência, acreditando que eles sim poderiam estar interferindo negativamente em seu câncer. Buscou uma terapia e compreendeu que descobrir a cura para sua impotência (sentida em relação aos seus problemas mesmo antes do câncer) se tornou a sua maior urgência e seu maior milagre.
A dor do câncer é multifacetada. E sobre isso AnaMi cita o conceito de "dor total" da médica inglesa Cicely Saunders. Para ela, "dor total" é a soma de todos os sofrimentos que um ser humano é capaz de sentir: a dor física negligenciada, a dor emocional, a dor espiritual, que se manifesta por meio da culpa, do castigo e da desconexão com o que considera sagrado, e a dor social, expressa em questões práticas como a falta de renda para manter o tratamento.
A autora de "Vida Inteira" descreve como se relacionou com esse conceito de "dor total": "Entre culpas e dores, encontrei sentido quando compreendi que ter câncer não foi culpa minha e que todas as dores me trouxeram a clareza de sentidos que tenho hoje". AnaMi fez as pazes com a culpa, a impotência e suas dores e conseguiu olhar a vida dali para frente, e isso sim seria sua responsabilidade. Escolheria procrastinar a felicidade? Escolheria seguir em frente? Ela seguiu, e pode ser revolução para ela mesma e para tantos.
Uma das questões que AnaMi trabalhou na terapia foi entrar em contato novamente com seus sonhos. Teve que pensar muito a respeito: quais seriam os sonhos que poderiam independer do tempo? Chegou em sonhos que gostaria de realizar nessa vida: "Queria melhorar essa questão da espiritualidade, será que não poderia trabalhar terapias holísticas para ajudar outros pacientes? Também gostaria de ter um lugar para oferecer acolhimento, informações, escuta e terapias para as pessoas se conectarem com essa cura que vai além da ausência de doenças. Se sobrar tempo, ainda sonho com a Tailândia e Jerusalém. E um amor, se não for querer demais."
O que sabemos pelo livro é que AnaMi teve esse lugar de ajuda a outros pacientes, a Casa Paliativa, e pode oferecer acolhimento a tantas e tantas pessoas que passavam pela experiência do câncer. Pegou sua própria dor e transformou em cura para outras pessoas.
O grande aprendizado aqui é que os sonhos estão aí para serem sonhados, mas que também podemos reajustar nossos sonhos às circunstâncias da nossa vida. O sonho não deve ser objeto de contemplação passiva. É preciso movimento. Nossa, achei tão libertador esse insight que AnaMi traz para nós todos. Vamos sonhar e vamos saber reajustar nossos sonhos. Mas nunca deixar de tê-los, eles são um horizonte para que possamos encontrar o sentido da nossa vida.
De todas as terapias e tratamentos experimentados por Ana Michelle, dois mereceram sua menção: o uso da Cannabis e a participação em rituais de Ayahuasca. Sobre a Cannabis, ela escreveu: além de oferecer alívio para dores crônicas relacionadas a diversos diagnósticos e tratamentos, ajuda a combater a náusea e a perda de apetite em pacientes sob tratamento quimioterápico.
Mas foi na Ayahuasca que AnaMi se encontrou, pode ter acesso a uma profunda experiência de humanidade e sentir profundamente o significado de cura: "Minha vida não é o câncer. Minha alma não estava doente e isso bastava". Tinha chegado ao insight mais poderoso para seu momento de vida, sentiu que seu corpo estava doente enquanto sua alma estava curada. AnaMi escreveu sobre isso: "Agora você sabe"; "Viva. A cura já é"; "Deus está em tudo o tempo todo". A autora fala que na Ayahuasca sua vivência foi, mais do que tudo, de autoconhecimento e libertação.
Não importa as terapias escolhidas, o importante é tratar a "dor total", do seu jeito, com o que melhor lhe trouxer a compreensão da sua vivência e das suas vontades de alma.
Em um raro momento de seu texto, Ana Michelle fala sobre momentos leves, nos quais ela sentia a vida pulsando até mesmo enquanto dirigia um carro: "Quando estou sozinha, eu canto alto, aproveito o sinal fechado para dançar e aprecio a arquitetura, os relevos, a paisagem, os grafites, as luzes, o pôr do sol no retrovisor, as pessoas que circulam pela cidade, passando rapidamente por meus olhos. Inúmeras vezes ao volante eu pensei: 'Acaba não vida. Está muito legal'". Nossa AnaMi, essa doeu meu coração!
É tão lindo ver como essa jovem lidou com a impermanência, a finitude e a consciência do tempo que adquiriu em sua jornada. Acabo esse texto com algumas frases de AnaMi sobre a importância e a relatividade do tempo, o que me traz a profunda reflexão de como estou olhando para o meu tempo de vida. Deixo vocês com as reflexões dela própria, repletas de descobertas e sabedoria.
O tempo de agora é todo o tempo que tenho do tempo que me resta. Não sei quanto tempo cabe nesse tempo. Mas sei o infinito que pode caber no agora do meu tempo.
Do tempo, só não quero aquele que se desperdiça. Como você tem vivido o seu tempo?
O grande barato é poder morrer grato por cada momento desta bela experiência que é ser humano
Em um mundo que celebra o raso, é transgressor se importar com a dor que não é sua. Você se importa?
Obrigada pela sua existência plena, AnaMi, que enriquece a nossa percepção do que é SER HUMANO.
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