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Vamos Falar Sobre o Luto?

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A imortalidade digital e seus efeitos sobre o luto

Reprodução/Netflix
Imagem: Reprodução/Netflix

Colunista do UOL

20/04/2023 04h00

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Já pensou no que você quer ser quando morrer? Já refletiu sobre a "vida eterna" numa nuvem digital? Não se trata de uma questão metafísica (embora também seja), mas de uma realidade para os mais de 4 bilhões de usuários de redes sociais em todo mundo: decidir pela morte tal qual a conhecemos ou se tornar um imortal virtual.

Quem traz esta discussão da maior importância é a psicóloga especialista em perdas e luto, Nazaré Jacobucci, que acaba de lançar o livro Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado - Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital (Editora Appris, 2023). "Vida e morte se tornam cada vez mais interligadas", escreve a autora, "e a decisão sobre o destino que cada indivíduo quer designar para o seu legado digital se faz cada vez mais necessária", diz.

Morremos, mas nossas contas, perfis e avatares seguem vivos. Segundo dados do site Statista (plataforma digital especializada em dados de mercado e consumidores), em 2021, o Facebook tinha 2.9 bilhões de usuários ativos e o WhatsApp 2 bilhões, em 180 países, trocando 65 bilhões de mensagens e 2 bilhões de chamadas de áudio e vídeo todos os dias. O que permanece de tudo isso depois que se morre? E ainda: o que fazer com esse legado?

O livro de Jacobucci é um primoroso trabalho acadêmico, mas com linguagem fluida e simples, bastante acessível ao público leigo que quer entender melhor como lidar com seus rastros no pós-vida (dá, inclusive, informações precisas sobre como excluir ou não seu histórico de cada uma das redes atuais). E fala sobre como seus entes queridos, amigos, família, poderão, se quiserem, continuar em contato com quem morreu através de aplicativos e recursos já disponíveis pela inteligência artificial.

Como esse prolongamento da vida interfere no luto?

Foi quando perdeu um grande amigo que a jovem empreendedora de tecnologia russa Eugenia Kuyda desenvolveu, em 2018, um aplicativo, o Replika, capaz de armazenar a fala, a opinião e as expressões de uma pessoa para criar um clone digital capaz de interagir com quem o acessar depois da sua morte.

O avanço da inteligência artificial abre novas portas para a proliferação de iniciativas assim. No Brasil, o neuropsicólogo Deibson Silva está criando um aplicativo semelhante, o Legathum, que cria uma pessoa na nuvem capaz de conversar com quem o acessar depois da sua morte.

"A princípio, o projeto de Deibson parece muito interessante, mas assim como o de Eugenia, pode trazer complicações para o que eu denomino de sequência no processo de luto", escreve a autora. "Após a assimilação da sua perda e sua integração ao cotidiano da pessoa, vivencia-se a compreensão da ausência e, consequentemente, da morte. Os aplicativos podem trazer um entrave na compreensão da perda definitiva."

O livro relembra um episódio perturbador da série "Black Mirror" (Netflix) que conta história de uma mulher, Martha, cujo namorado, Ash, morre em um acidente. Ash era um usuário frequente de redes sociais, o que permitiu uma empresa de inteligência artificial recriar prodigamente mensagens diárias e possibilitar conversas inéditas online. O Ash digital com quem Martha se corresponde evoluiu para um clone robô com quem, a princípio, ela viveu o êxtase do milagre do renascimento do seu amor. No entanto, logo fica claro que o Ash robô não é o Ash humano, mas um eco dos pensamentos e dados publicados antes de sua morte. Aos poucos, a protagonista se depara com a triste realidade de estar vivendo com um zumbi digital —e se livra dele.

A fabricação de um replicante com aparência humana ainda é ficção científica, mas a possibilidade de comunicação com esses avatares é bem real. O livro de Jacobucci traz a análise da psicóloga Gabriela Casellato sobre os possíveis efeitos dessas ferramentas na elaboração do luto. "Por mais difícil que seja conviver com a ausência, disfarçar ou distorcer a realidade pode ser muito perigoso para a saúde mental do enlutado, pois confunde e adia o enfrentamento de algo inevitável, podendo comprometer seu ajustamento à vida e aos relacionamentos sociais. Um app usado livremente pelo enlutado estaria a serviço de suas angústias e desespero diante da saudade. Temos que tomar muito cuidado com o uso da tecnologia a serviço de soluções "mágicas" que funcionam como falsos anestésicos. Quando seu efeito acaba, a ressaca é muito dolorosa."

Este convite à reflexão sobre o legado digital encerra, por ora, nossa passagem por esta plataforma do VivaBem. Esta é a última coluna do "Vamos Falar Sobre o Luto?" neste espaço onde tivemos a feliz oportunidade de abordar temas sensíveis e importantes relacionados à morte e o que vem depois. Em um pouco mais de um ano de publicações semanais, eu e minhas colegas Gisela Adissi, Rita Almeida e Sandra Soares contamos histórias, trouxemos entrevistas, depoimentos, insights, dicas de livros, filmes, séries em torno do tema central do luto. Como o legado digital não morre, todos os textos aqui publicados e outros inéditos seguirão acessíveis no nosso site vamosfalarsobreoluto.com.br, onde continuamos no ar com a missão de trazer informação, inspiração e acolhimento para quem sofre uma perda ou quer ajudar alguém a elaborar seu luto.

Foi uma honra e um prazer dividir nosso conhecimento com vocês por aqui. Continue com a gente no site e no Instagram. Até breve!