Anemia falciforme pede cuidado constante e reduz tempo de vida quando não tratada
Imagine ser um estudante de medicina em 1946, na Bahia, e descobrir uma doença autossômica recessiva. Pois esse foi o feito do alagoano Jessé Accyoli que, aos 25 anos, descreveu os mecanismos de herança genética da anemia falciforme. A enfermidade tem como característica a presença de glóbulos vermelhos em forma de foice ou meia-lua que causam danos à saúde.
Anos depois, os cientistas americanos James V. Neel e E. A. Beet seriam reconhecidos pelo mesmo feito, e Accyoli esperaria quase três décadas até ser reconhecido junto a eles. Apesar disso, a partir do médico baiano, sobreveio a instituição do diagnóstico precoce desta que é uma doença que afeta milhões de pessoas em todo o mundo.
A anemia falciforme é uma doença crônica para a qual somente alguns pacientes encontrarão a cura por meio do transplante de medula óssea. Isso porque é raro que se encontre um doador compatível.
Para os demais, quanto mais cedo se der o diagnóstico, maior será a chance de controle da doença e prevenção das complicações que ela causa, como dores decorrentes da obstrução sanguínea, infecções, AVC (acidente vascular cerebral) e a síndrome torácica aguda, entre outras condições.
Entenda o que é a anemia falciforme
Trata-se do tipo mais comum e mais grave do grupo das doenças falciformes, que se caracteriza pela presença de glóbulos vermelhos (hemácias) em forma de foice ou meia-lua.
Em pessoas sem a doença, as hemácias são arredondadas e passam com facilidade pela corrente sanguínea. Um dos componentes delas, a hemoglobina (pigmento que dá cor vermelha ao sangue), tem a função de transportar oxigênio para todo o corpo.
Em indivíduos com anemia falciforme, as hemácias falciformes são mais rígidas e pegajosas e, por isso, têm maior dificuldade para passar pelos vasos sanguíneos mais finos. Isso promove o que os médicos chamam de oclusão sanguínea —ou seja, elas obstruem o fluxo do sangue.
O resultado disso são crises de dor, maior propensão a infecções, AVC, síndrome torácica aguda. Com o passar do tempo, há ainda o comprometimento progressivo de vários órgãos como pulmões, coração, ossos, rins, fígado, retina, pele etc.
Além disso, como as hemácias falciformes morrem mais cedo [ela se renovam no nosso corpo, em média, a cada 120 dias), isso provoca uma escassez de hemoglobina, o que leva à anemia.
Por que isso acontece?
A doença decorre de uma alteração genética que afeta a forma como os glóbulos vermelhos são formados. De origem hereditária, é preciso que ambos os pais tenham a mutação genética.
A maioria das pessoas receberá de cada um de seus pais genes para a produção de hemoglobina A. Assim, os filhos desses pais serão AA. No caso da AF, os filhos receberão de cada genitor a hemoglobina S. Assim, serão SS.
"Na maioria das vezes, os genitores não têm a enfermidade, mas possuem o gene alterado. Nesse caso, prevalece a lei genética de Mendel —25% de sua prole terão a chance de herdar a mutação; 50% será igual aos pais (terão o traço genético) e 25% dela herdará os genes não alterados", explica Ana Cristina Silva Pinto, médica hematologista do hemocentro de Ribeirão Preto (SP).
Tenho traço falciforme, posso vir a ter a doença?
De acordo com Sandra Regina Loggetto, hematologista pediatra e coordenadora do Comitê de Hematologia e Hemoterapia Pediátrica da ABHH, essa é uma dúvida muito comum, que preocupa muitas pessoas.
Ter o traço da anemia falciforme significa que você herdou de seus pais um gene da hemoglobina A e outro gene da hemoglobina S. Portanto, você nunca terá a doença. "A pessoa já nasce determinada a ter só o traço ou a ter a anemia falciforme. Não há como mudar de um estado para outro", esclarece a médica.
Quem precisa ficar atento?
As populações de África, Américas, Caribe, Arábia Saudita e Índia são as mais acometidas, e com os recentes movimentos migratórios, Itália, França, Grécia e Turquia também entraram no mapa da doença. No Brasil, dada a grande miscigenação racial, o problema pode acometer qualquer pessoa.
Saiba identificar os sintomas
Tratando-se de uma mutação genética, a enfermidade já se manifesta logo no primeiro ano de vida, especialmente após o 4º mês.
Na maioria das vezes, o sintoma inicial é a síndrome mão-pé [em crianças de até 2 anos], uma inflamação nas articulações dos tornozelos, punhos, mãos e pés. As regiões ficam vermelhas e quentes e o incômodo faz que a criança mude seu comportamento, tornando-se mais chorosa e inquieta.
São também possíveis manifestações da anemia falciforme:
- Anemia
- Histórico de crises de dor (membros inferiores, ossos)
- Amarelo nos olhos (icterícia)
- Lesões em órgãos alvo (baço, rins, cérebro)
- AVC
- Síndrome torácica aguda (crise de dor no tórax)
- Infecções
- Febre
- Priapismo (ereção dolorosa do pênis, especialmente em adolescentes e adultos jovens)
- Sequestro esplênico (especialmente entre crianças pequenas: o baço "rouba" o sangue da circulação)
- Algumas pessoas apresentam ainda atraso no crescimento
Quando é hora de procurar ajuda?
Thais Celi Lopes Benevides, hematologista, diz que, geralmente, o sinal de alerta pode ser a primeira crise de dor, que pode ser nos ossos, mas também nos músculos ou articulações.
"A mãe poderá notar ainda que a urina da criança está mais escura, palidez e que as infecções têm se repetido. Nessa hora é preciso procurar atendimento médico para uma investigação."
Na maioria das vezes quem avalia a criança é um pediatra. Caso se constate que se trata de anemia falciforme, o pequeno será encaminhado para centros especializados, que podem ser hemocentros ou hospitais universitários.
Como é feito o diagnóstico?
No Brasil, existe uma alta taxa de comorbidades e mortalidade relacionadas à anemia falciforme. Assim, desde 2001, o Ministério da Saúde incluiu no Programa Nacional de Triagem Neonatal o teste para detectar essa enfermidade, que é feito por meio do Teste do Pezinho.
Isso significa que, hoje, a maior parte da população tem acesso ao diagnóstico precoce da doença, já na primeira semana de vida. Mas a suspeita da enfermidade também já pode ocorrer durante o pré-natal. Aliás, a pesquisa da doença já foi incluída nos exames da gestante para detectar se a futura mãe possui o traço falciforme.
Para os que não tiveram acesso a essa triagem preventiva, o diagnóstico é simples e realizado por meio de um estudo da hemoglobina. Ele é feito através de técnicas de eletroforese, como a focalização isoelétrica ou a cromatografia líquida de alta resolução, que confirmam não só a presença como mostram o tipo da doença falciforme.
Conheça as opções de tratamento
A anemia falciforme não tem cura para a maior parte das pessoas. Por isso, o objetivo do tratamento é aliviar sintomas, prevenir crises de dor, reduzir lesões nos órgãos alvo e controlar a anemia. Essa terapia é sempre individualizada porque atenderá às necessidades de cada paciente e a gravidade de seu quadro.
As estratégias terapêuticas que os médicos têm à disposição são as seguintes:
Medicamentos para reduzir a dor - além dos analgésicos, para 90% dos pacientes, a hidroxiureia tem se mostrado útil para diminuir as crises, inclusive as da síndrome torácica aguda. O fármaco também reduz internações e transfusões. Outra medicação —que já foi aprovada pela Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária)— é vista como promissora pelos médicos: trata-se do crizanlizumabe, que é capaz de inibir a adesão das hemácias no vaso sanguíneo reduzindo as crises de dor;
Transfusão de sangue - reservada aos casos mais graves e para pessoas refratárias ao uso de medicamentos.
O tratamento curativo é o transplante de medula óssea. Embora o procedimento possa representar a cura e já ser acessível por meio do SUS (Sistema Único de Saúde), é preciso encontrar um doador familiar 100% compatível, que geralmente é um irmão do paciente. No entanto, menos de 20% possuem esse doador na família. No futuro, os médicos acreditam que a solução será a terapia gênica.
Como é o prognóstico
Dados da triagem neonatal mostram que, no Brasil, a cada ano nascem cerca de 1.100 crianças com doenças falciformes, e 25% delas não vão chegar aos 5 anos de idade. A razão para isso seriam as complicações relacionadas à enfermidade.
No estado de São Paulo, a incidência é de 1 em cada 4.000. De acordo com o último relatório do Ministério da Saúde, no Brasil, quase 4 bebês a cada 10 mil nascidos vivos têm a doença.
A expectativa de vida tende a ser menor do que a das pessoas que não têm a doença, mas isso depende de alguns fatores, como a gravidade, daí a importância do diagnóstico precoce e do tratamento.
Possíveis complicações
Confira, a seguir, os problemas mais comuns relacionados à anemia falciforme:
- Crises álgicas ou vaso-oclusivas - dores decorrentes da obstrução sanguínea. Ela pode aparecer de repente, ser leve ou intensa e durar de 3 a 7 dias. Elas representam a maior causa de internação por essa doença;
- Infecções - pessoas com anemia falciforme são mais propensas a infecções --em especial as crianças. Entre elas são comuns gripes, meningites e pneumonias. E é a primeira causa de morte entre esses pacientes. É essencial manter a carteira de vacinação em dia e seguir o tratamento indicado pelo seu médico;
- Síndrome mão-pé;
- Doenças oculares;
- Síndrome torácica aguda - dor no peito com comprometimento do pulmão (2ª causa de óbito relacionada à doença);
- AVC - causa mais comum em crianças com anemia falciforme;
- Doença renal crônica com evolução para diálise (10% a 15%).
Dicas para prevenir crises
Além de seguir as instruções de seu médico, você pode colaborar com o tratamento adotando as seguintes medidas:
- Mantenha a carteira de vacinação em dia;
- Garanta o consumo adequado de líquidos diariamente;
- Evite expor-se a extremos de temperatura (calor ou frio);
- Adote práticas de controle do estresse e da ansiedade;
- Faça exercícios, mas não pratique atividades extenuantes.
Fontes: Ana Cristina Silva Pinto, médica hematologista do Hemocentro de Ribeirão Preto, ligada ao Hospital das Clínicas da FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), e coordenadora do Programa de Hemoglobinopatias da mesma instituição; Sandra Regina Loggetto, hematologista pediatra e coordenadora do Comitê de Hematologia e Hemoterapia Pediátrica da ABHH (Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular), gerente médica do Ambulatório de Hemoglobinopatia do Banco de Sangue de São Paulo e coordenadora do departamento de Hematologia Pediátrica do Hospital Infantil Sabará (SP); Thais Celi Lopes Benevides, hematologista do HUAC-UFCG (Hospital Universitário Alcides Carneiro da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba).
Revisão médica: Ana Cristina Silva Pinto e Sandra Regina Loggetto.
Referências: Ministério da Saúde; CDC (Centers for Disease Control and Prevention); Andrade, R. de O. À sombra da história. Revista Pesquisa Fapesp. São Paulo. Vol. 146, agosto, 2016; Mangla A, Ehsan M, Agarwal N, et al. Sickle Cell Anemia. [Atualizado em 2021 Out 10]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2021 Jan-. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK482164/.
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