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"Voltei a andar 5 anos após fazer uma cirurgia bariátrica"

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Vitor Tavares - @vitoramtav

Da BBC News Brasil em São Paulo

28/11/2019 12h15

Sem conseguir se alimentar e com a deficiência de vitaminas do complexo B, Raquel perdeu o movimento das pernas e chegou a pesar menos de 40 kg. Cinco anos depois do procedimento, começou a dar os primeiros passos: 'Momento mais feliz da vida'.

Pouco menos de dois anos após fazer uma cirurgia bariátrica, a estudante carioca Raquel Guimarães, então com 22 anos, já tinha perdido mais de 70 kg. Mas o que podia parecer uma história de recuperação bem-sucedida, na verdade, era o início de um pesadelo que levou médicos a desenganá-la e a obrigou a reaprender a andar.

Raquel saiu dos seus 120 kg para um quadro de desnutrição grave, com menos de 40 kg. Sem conseguir se alimentar, sofreu deficiência das vitaminas B1 e B12 e, com isso, perdeu o movimento das pernas, apresentou quadro de confusão mental e até problemas de visão.

O pai da estudante — que àquela altura, em 2016, via a filha sobreviver graças a transfusões de sangue e alimentação por sonda — ouviu dos médicos a pior notícia: que a filha "não teria mais jeito".

Em 2019, cinco anos após o procedimento em um hospital particular na zona oeste do Rio de Janeiro, a jovem voltou a dar os primeiros passos sozinha, compartilhando as conquistas nas redes sociais: "Foi o momento mais feliz da minha vida".

O procedimento a que Raquel foi submetida é conhecido como bypass gástrico, o tipo de cirurgia bariátrica mais comum no Brasil e que provoca uma grande alteração no sistema digestivo, com a redução do estômago e efeitos sobre os intestinos.

Com problemas para se alimentar no pós-operatório, Raquel acabou desenvolvendo a chamada encefalopatia de Wernicke, provocada pela deficiência grave de vitaminas do complexo B.

O caso da jovem é considerado raro pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM). O presidente da organização, o médico Marcos Vilas Bôas, diz que a evolução da paciente é algo totalmente "atípico" e mais raro até do que óbitos decorrentes do procedimento.

No Brasil, foram realizadas em 2018 cerca de 65 mil cirurgias bariátricas, segundo a SBCBM — e mais de 13 milhões de brasileiros são considerados "elegíveis" para o procedimento. O índice de mortalidade, segundo Vilas Bôas, é de cerca de 0,2% dos casos.

Mas o médico alerta para cuidados no pós-operatório. "Hoje a cirurgia é muito segura. Mas é extremamente importante que todos façam um acompanhamento com equipes multidisciplinares, com aconselhamento médico, nutricionistas. E precisam informar imediatamente se sentirem qualquer coisa que não esteja adequada com a recuperação", diz.

"Queria comprar a roupa que eu quisesse"

Para Raquel, que durante anos lutou com a balança, a decisão de realizar a cirurgia aconteceu naturalmente.

"Pagava personal (trainer), ia na academia certinho, ia para o endocrinologista. Quando começava a emagrecer, dava problema no tornozelo e precisava imobilizar. Sem ir à academia, engordava tudo de novo. Poxa, uma jovem de 20 anos, se esforçava tanto, mas o resultado não vinha."

Assim, a mãe de Raquel, a professora Valdinere Guimarães, explica por que o assunto da cirurgia bariátrica chegou à mesa de jantar da casa da família, em Bangu, zona oeste do Rio.

Os casos bem-sucedidos estavam por todos os lados. Na família e na vizinhança, os Guimarães tinham exemplos do bem que o procedimento poderia fazer a Raquel.

"Eu queria comprar não uma roupa que coubesse mim, mas a roupa que eu quisesse vestir", argumentava Raquel. "Por que não fazer, então?", concluiu Valdirene ao apoiar a filha, então com 20 anos e estudante de fisioterapia.

De acordo com a SBCBM, pessoas entre 18 e 65 anos estão em uma faixa etária sem restrições para o procedimento.

Além da perda de peso, a cirurgia é indicada para a remissão de doenças associadas à obesidade, como diabetes e hipertensão, e diminuição do risco de mortalidade. "Muitos não veem a obesidade como uma doença grave, mas é grave", alerta Vilas Bôas.

Com a decisão tomada, a família Guimarães conseguiu os R$ 22 mil necessários para o procedimento particular. Em setembro de 2014, a cirurgia foi feita, sem complicações iniciais. Mas tudo mudou dois meses depois.

"Eu não conseguia comer nada, com vômitos e diarreia. Comecei a ter formigamentos, cãibras, dormência nas pernas. Esquecia das coisas, falava coisas confusas. Os médicos chegaram a dizer que era falta de potássio e que não tinha a ver com cirurgia. Então, voltei para casa", conta Raquel.

Os sintomas que a estudante sentia já eram sinais de que algo não ia bem na recuperação. Faltava a Raquel, segundo os relatos da família e de um médico que a acompanhou o caso consultado pela BBC News Brasil, tiamina (a vitamina B1) e vitamina B12.

A deficiência vitamínica havia evoluído para um caso de encefalopatia de Wernicke, frequentemente causada pela má alimentação ou pelo consumo excessivo de álcool, e para uma polineuropatia, um distúrbio simultâneo de nervos periféricos em todo o organismo que pode ser causado pela falta desses nutrientes.

Em dezembro de 2014, Raquel estava em casa, em pé, quando desabou, sem força nas pernas. Levada ao hospital, foi identificada a falta de vitaminas, segundo a família. A jovem foi internada no CTI para repor os nutrientes, mas recebeu um diagnóstico que assustou: já não voltaria a andar.

"Esse foi o começo da nossa luta", conta Raquel.

Após um mês internada, mas ainda sem andar, a jovem teve alta. Em casa, não conseguia se alimentar. O que comia, vomitava. E chegou a pesar menos de 40kg no momento mais crítico. "Eu olhava para ela e pensava: "minha filha não está viva. Eu estava vendo uma caveira na cama", relata a mãe.

O quadro se agravou para anemia grave e desnutrição. Em dezembro de 2015, Raquel foi novamente internada para receber transfusões de sangue e passou a se alimentar por meio de sonda. Ao pai da estudante, os médicos chegaram a pedir que reunisse a família porque a jovem "não teria mais jeito".

"Eu ouvi uma voz dizer 'vai salvar sua filha'. Eu obedeci e me prometi que faria de tudo para salvá-la", contou a mãe, Valdirene.

Novo pai, nova filha

Foram incontáveis os exames realizados em Raquel para tentar descobrir por que ela não conseguia se alimentar, mesmo mais de um ano após a cirurgia.

A jovem definhava na cama do hospital, ao ponto de não conseguir mais levantar o braço. A mãe dormia todos os dias num sofá, ao lado do leito, vivendo à base de analgésicos para dores causadas por noites mal dormidas.

"Quando vi uma menina tão nova com um quadro daquele, numa cama, vi que algo não batia. Aquela complicação não era normal. Muitos exames foram feitos, a anatomia da cirurgia estava correta. Mas eu resolvi insistir", relata o clínico médico Edward Pinto de Lima Júnior, que até hoje chama Raquel de "filha" e é chamado por ela de "pai".

Contrariando sugestões de outros colegas, que falavam que não havia mais nada a ser feito, o clínico resolveu investigar. As idas ao hospital passaram e ser diárias, e a relação com os Guimarães virou quase familiar. "É algo muito raro de acontecer na profissão, mas eu passei a amar essa menina. Eu apenas não podia perder ela", conta Lima Júnior.

Um exame chamado enterografia mostrou que Raquel havia tido uma resposta de estenose exacerbada — quando ocorre um estreitamento do trato digestivo no momento da cicatrização interna da cirurgia. No caso da jovem, o problema, que é como se fosse a formação de uma "queloide" interna que impedia a passagem de alimentos, estava no intestino delgado.

"A estenose não é fixa, ela vai acontecendo. Os outros exames não identificaram esse problema e, infelizmente, não dá para saber se a estenose não existia na ocasião ou se apenas as imagens não mostraram", explica Lima Júnior. Segundo o presidente da SBCBM, o médico Marcos Vilas Bôas, quando identificada uma estenose, procedimentos simples de dilatação da região costumam resolver o problema.

Para Raquel, o procedimento foi o início de uma nova fase. Ela voltou a se alimentar pela boca, tomar água e, finalmente, iniciou a recuperação. Ganhou peso e voltou a sentir as pernas. ""Eu achava que não ia conseguir, estava exausta. Pensava: 'não vou andar mesmo, não adianta nem fazer fisioterapia'. A virada foi quando comecei a sentir as pernas. Eu pensei: 'espera aí, tem chance sim de eu começar a voltar a andar'", conta.

Apesar de sentir os membros inferiores, Raquel não conseguia mais andar. Sem movimento e sem fisioterapia durante o período de internação no hospital e da recuperação, as pernas ficaram atrofiadas. "Primeiro cuidamos de uma coisa e aí passamos a precisar cuidar de outra", conta Valdirene.

Dos clínicos e nutricionistas, a jovem passou a frequentar mais agora consultórios de ortopedistas. Até que, em setembro de 2017, passou por um procedimento cirúgico para colocar um fixador externo na perna direita. Um ano depois, foi a vez da perna esquerda.

A fisioterapia virou rotina em casa. Movimentos na cama, na piscina, com um andador... Com o tratamento, em julho de 2019, Raquel conseguiu se soltar do apoio e ficar em pé sozinha, pela primeira vez desde o dia em que caiu no meio de casa — quase 5 anos depois de passar pela cirurgia e pelo "martírio" que se seguiu.

"Depois de cinco anos sem abraçar minha filha em pé, eu consegui. Foi a coisa mais emocionante. Eu não queria soltar. Fiquei agarrada com ela, uma sensação maravilhosa", relembra Valdirene.

Um dos primeiros a receber o vídeo com a conquista foi o "pai" Edward Júnior, que recebe até hoje frequentemente mensagens sobre a evolução de sua "filha". "Foi um espetáculo de obstinação, não só dela mas de toda família. Ela ensinou todo mundo, mesmo quando fraquejava."

Nas redes sociais, Raquel hoje mostra, além de sua recuperação, aquilo que muitos jovens que se submetem ao tipo de procedimento costumam fazer: o "antes e depois". Não só da perda de peso, mas também o antes e depois de "dar ruim", como ela mesma se refere às complicações.

"Parece que eu bebi a noite inteira? Sim... porém, são cinco anos sem saber como é andar, então peguem leve", escreveu num vídeo em que mostra os primeiros passos sozinha.

Aos 25 anos, com 1,72 meto e 58 kg, Raquel prepara um livro de memórias, com o título Caminhando nas Estrelas. Nele, vai relatar o momento do qual poucos podem se lembrar: qual é a sensação de aprender a andar? "Um passo de cada vez e a gente chega lá."