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O que explica o 'ódio irracional' aos veganos

Zaria Gorvett

Da BBC Future

01/03/2020 11h46

Em vídeos do incidente, é possível ver o manifestante pró-carne segurando o corpo mole e peludo do animal — sem cabeça — enquanto uma multidão atordoada espera que ele seja preso. Sua boca está cheia de sangue. Em um determinado momento, uma pessoa questiona: "Por que você está fazendo isso?".

Essa pergunta, aparentemente, é difícil de responder.

Com o crescimento da popularidade do estilo de vida vegano (que não inclui o consumo de nenhum tipo de carne, nem produtos derivados de animais, como mel, leite, gelatina ou ovos), surgiu também uma onda de ódio contra ele.

Comer carne ou não comer carne? O debate virou um campo de batalha. E, embora seja natural que as pessoas discordem, as paixões despertadas nessa discussão parecem desafiar a razoabilidade.

Pesquisas mostram que apenas viciados em drogas enfrentam o mesmo grau de estigma que os veganos — e entre estes, os menos populares de todos são aqueles que citam a crueldade contra animais como argumento. Dado que a maioria de nós provavelmente gostaria de ver menos sofrimento no mundo, por que existe tanto ressentimento por aqueles que fazem algo a respeito?

Se você se atreve a perguntar, os veganófobos têm muitas explicações razoáveis á o argumento da hipocrisia: a ideia de que os veganos também têm sangue nas mãos, na forma de "massacres" de plantas, do custo ambiental dos abacates e de todos os animais impactados por plantações.

Outros argumentos populares incluem a percepção dos veganos como excessivamente presunçosos e zelosos. É como diz a piada: "Como você reconhece um vegano em um jantar? Não se preocupe! Ele vai te contar!".

Mas essas são realmente as razões pelas quais algumas pessoas não gostam dos veganos? Nem todo mundo está convencido. Alguns psicólogos têm outra teoria: a de que, longe de ser motivado por fatores ao alcance de nossa consciência, o ressentimento generalizado que temos pelos veganos se reduz a preconceitos profundamente arraigados em nossa psiquê.

Hank Rothgerber, psicólogo social na Universidade de Bellarmine, nos EUA, acredita que tudo se resume à pergunta: como continuamos a comer carne?

"Basicamente, vivemos em uma era, pelo menos no mundo ocidental, onde há mais e mais evidências, mais e mais argumentos e mais e mais livros sobre como comer carne é ruim", diz Rothgerber. "Mas, ainda assim, nosso comportamento não mudou significativamente."

Ele ressalta que previsões iniciais para 2018 indicam que este terá sido o ano com o maior consumo de carne per capita na história dos Estados Unidos.

"O que eu estou observando é: como as pessoas racionalizam isso e ainda se sentem boas pessoas?"

Para continuar a comer carne, sugere Rothgerber, é necessária uma verdadeira ginástica mental. Felizmente, nossos cérebros são extremamente bons em nos proteger das realidades que não queremos enfrentar — e há uma série de truques psicológicos à nossa disposição.

Por exemplo, há a "dissonância cognitiva", que ocorre quando uma pessoa tem dois pontos de vista incompatíveis e atua mais de acordo com um deles. Por exemplo, sua afeição por animais pode começar a colidir com a ideia de que não há problema em comê-los.

Alguns psicólogos já têm até um nome para isso: o "paradoxo da carne". Alguns usam, no entanto, termos mais fortes, como "esquizofrenia moral".

A tensão resultante disso pode nos fazer sentir estressados, irritados e infelizes. Mas, em vez de resolver a questão alterando nossas crenças ou comportamento, é bastante normal colocar a culpa em motivos ainda mais alheios. Por exemplo, quando corretores perdem certos investimentos, tendem a culpar seus gerentes. Isso permite que eles continuem acreditando que tomam excelentes decisões, enquanto enfrentam o fato de terem obtido exatamente o resultado oposto ao que deveriam (e pelo qual são pagos) e de que perderam dinheiro.

No caso de comer carne, Rothgerber sugere que temos várias estratégias — cerca de 15 — que nos permitem evitar enfrentar o paradoxo da carne. Isso inclui estimar que comemos menos carne do que a realidade; ignorar a forma como ela foi produzida; ou se contentar com o consumo de animais de criação "humanitária".

Mas, diante dessas estratégias, os veganos aparecem de novo como estraga-prazeres.

Segundo Rothgerber, as pessoas tendem a não considerar o comer carne como uma ideologia. A hegemonia do consumo de carne em todo o mundo ajuda os onívoros entre nós a evitar a ideia de que isso é uma escolha — afinal, é exatamente o que todo mundo está fazendo. Mas quando um vegano aparece em um jantar, de repente, saímos desse ambiente confortável.

Por sua mera existência, os veganos forçam as pessoas a confrontar sua dissonância cognitiva. E isso irrita.

Décadas de pesquisas psicológicas mostraram que, na tomada de decisão, as pessoas tendem a se permitir chegar à sua conclusão preferida, desde que possam inventar uma justificativa racional sustentando-a. Por exemplo, um estudo descobriu que, quando os participantes queriam acreditar que seriam bem-sucedidos academicamente, eram mais propensos a recordar seus bons desempenhos no passado que seus fracassos.

No caso da carne, esse "raciocínio motivado" pode levar as pessoas a encontrar explicações sobre por que comer animais é a decisão correta. E uma delas é que os veganos são ruins.

Em um estudo liderado por Julia Minson, psicóloga da Universidade da Pensilvânia (EUA), os participantes foram questionados sobre suas atitudes em relação aos veganos e, em seguida, solicitados a pensar em três palavras associadas a eles. Pouco menos da metade dos participantes tinha algo negativo a dizer e, curiosamente, 45% incluíam uma palavra que se referia às suas características sociais. Por exemplo, os veganos eram associados aos adjetivos "esquisito", "arrogante", "militante", "tenso", "estúpido" e — misteriosamente — "sádico".

Não contribui para a popularidade dos veganos o fato de que eles realmente se consideram melhores do que aqueles que comem carne; os vegetarianos tendem a avaliar as virtudes de outros vegetarianos como maiores do que a dos não vegetarianos. Mas também é verdade que, no fundo, talvez a maioria de nós concorde com eles — e essa é uma das principais fontes de animosidade.

Nesse sentido, quanto mais justos os participantes do estudo esperavam que os vegetarianos fossem, mais severas as palavras escolhidas para descrevê-los.

"Há muita pesquisa sobre como não gostamos de membros de grupos que são potencialmente moralmente inferiores ou que a sociedade vê como errados", diz Benoit Monin, psicólogo da Universidade de Stanford que também esteve envolvido no estudo. "Mas é intrigante para mim que também rejeitemos membros de grupos que fizeram escolhas louváveis deliberadamente."

Há evidências crescentes de que somos particularmente ameaçados por pessoas que têm moral semelhante a nós, ainda mais se elas forem além do nosso desempenho. No final das contas, nosso medo de ser julgado ultrapassa em muito qualquer respeito que possamos ter por sua integridade superior.

Para um segundo estudo, a equipe pediu a alguns participantes que pensassem em como os vegetarianos julgariam sua moralidade; e, depois, quais os traços de personalidade mais prováveis para os vegetarianos. Outro grupo passou pelos testes, mas na ordem contrária. No experimento, aqueles que pensaram em ser julgados primeiro por vegetarianos tenderam a associá-los mais fortemente a palavras negativas.

De fato, Monin diz que esse medo de reprovação é tão potente que os vegetarianos (aqueles que consomem produtos derivados de animais, como leite e ovos, mas não carne) têm mais probabilidade de serem intimidados por veganos do que os carnívoros. Alguns estudos já indicaram que os veganos classificam os vegetarianos como hipócritas.

De acordo com Rothgerber, a "difamação do benfeitor" pode ser uma maneira de desviar a atenção de nossas próprias decisões duvidosas — o que ajuda a acalmar os sentimentos desconfortáveis que a dissonância cognitiva cria.

A descoberta também explica por que veganos e vegetarianos por motivos éticos são mais irritantes para os onívoros do que aqueles que escolhem o estilo de vida por razões de saúde.

Ironicamente, as mesmas indisposições psicológicas também sugerem que anúncios pró-veganismo que se concentrem no sofrimento dos animais podem ter efeito oposto do pretendido; enquanto algumas pessoas podem reagir comendo menos carne, as pessoas que não mudam seu comportamento precisam lidar com o desconforto de tentar justificar suas ações.

Então, da próxima vez que um ativista comedor de esquilos chegar às manchetes, pense: no fundo, pessoas como ele podem realmente ser amantes de animais, fazendo esforços para encobrir isso.