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Coronavírus: testes com cloroquina causam corrida a hospitais e discordâncias entre médicos na França

Agente sanitário coleta amostra de motorista na França para testar presença do novo coronavírus - AFP
Agente sanitário coleta amostra de motorista na França para testar presença do novo coronavírus Imagem: AFP

Daniela Fernandes

Da BBC News Brasil, em Paris (França)

26/03/2020 10h22

Após concluir em estudo relâmpago que hidroxicloroquina reduziu carga viral de pacientes com covid-19, hospital em Marselha resolveu usá-lo em tratamentos, dividindo autoridades e especialistas.

A utilização da hidroxicloroquina por hospitais públicos no sul da França em pacientes diagnosticados com o novo coronavírus, antes da conclusão de testes científicos mais amplos no país, está provocando grande polêmica entre pesquisadores, médicos e políticos em meio ao combate da pandemia, que já matou mais de mil pessoas na França.

No domingo, uma equipe comandada pelo professor Didier Raoult, diretor do Instituto Hospital Universitário Méditerranée Infection de Marselha, anunciou o uso da hidroxicloroquina - utilizada no tratamento de artrite reumatoide e da lúpus - em todos os pacientes infectados pelo novo coronavírus.

No tratamento, a hidroxicloroquina, um derivado da cloroquina (usada para combater a malária), é associada ao antibiótico azitromicina, conforme um estudo clínico publicado na semana passada pelo professor Raoult. A pesquisa revelou uma diminuição, em apenas seis dias, da carga viral de pacientes com covid-19 que receberam esses dois medicamentos.

"Nós pensamos que não é moral que essa associação (de remédios) não seja incluída sistematicamente nos testes terapêuticos referentes ao tratamento da covid-19 na França", afirmam os médicos do hospital de Marselha em um comunicado.

Desde domingo, filas com centenas de pessoas têm se formado em frente ao hospital de Marselha dirigido por Raoult, que também passou a fazer testes em todas as pessoas que apresentassem algum sintoma do novo coronavírus.

Até o momento, por falta de material disponível, as autoridades de saúde da França limitavam os testes a pacientes com sintomas graves e ao pessoal médico. O governo anunciou nesta terça-feira que os exames no país serão multiplicados em breve.

Em Nice, o Centro Hospitalar Universitário também já está realizando o tratamento de pacientes com base no estudo publicado por Raoult.

"Quando a guerra é declarada, não temos tempo de ficar fazendo testes em ratos durante seis meses", diz o prefeito de Nice, Christian Estrosi, infectado pelo novo coronavírus e que está usando a hidroxicloroquina.

Ele autorizou o hospital de Nice a aplicar o tratamento preconizado por Raoult, com o consentimento das famílias dos pacientes, e afirmou desejar que ele seja generalizado em toda a França para combater a pandemia.

Diante das divisões provocadas na França em relação à eventual eficácia do medicamento e aos possíveis efeitos colaterais, como arritmia cardíaca, o Alto Conselho Científico da França recomendou, nesta semana, utilizar a cloroquina e a hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 apenas em casos severos de pacientes hospitalizados, após decisão de um junta médica e sob rigoroso monitoramento - no Brasil, a mesma medida foi anunciada na quarta-feira pelo Ministério da Saúde.

Os dois hospitais do sul da França, continuam, no entanto, receitando a hidroxicloroquina associada ao antibiótico. Questionado pela BBC News Brasil, o instituto Mediterrannée Infection de Marselha não soube informar quantas pessoas já receberam o tratamento desde domingo.

No atual contexto de urgência sanitária, vários políticos franceses têm pressionado o governo para que o país "não fique atrasado" e utilize a hidroxicloroquina no tratamento do novo coronavírus.

Enquanto alguns desejam acelerar o processo e administrar o medicamento de forma ampla, cientistas e autoridades sanitárias pedem cautela, ressaltando que os estudos do professor Raoult são preliminares e que até o momento não há comprovação científica da eficácia da hidroxicloroquina.

Apesar do estudo do professor Raoult ser considerado promissor, também pelo ministro da Saúde francês, muitos cientistas do país alertam que ele foi realizado com um pequeno grupo, de apenas 24 pessoas, e denunciam métodos pouco rigorosos e até possíveis falhas na metodologia da pesquisa.

A virologista Françoise Barré-Sinoussi - prêmio Nobel de Medicina pela sua participação na descoberta do vírus HIV, da Aids, e que preside um segundo conselho científico que assessora o governo francês, criado nesta terça-feira, no combate à Covid-19 - ressalta que o estudo de Marselha foi realizado com um pequeno número de pacientes e tem problemas de metodologia.

"É absolutamente indispensável que o teste desse medicamento seja realizado com rigor científico para obter uma resposta sobre sua eficácia e eventuais efeitos colaterais. Precisamos ter algo sério. Isso não é como Doliprane (paracetamol), há riscos cardíacos. Não é prudente propor isso a um grande número de pacientes nesse momento, já que não temos resultados confiáveis", afirmou Barré-Sinoussi em entrevista ao jornal Le Monde.

"Isso foi apontado como um medicamento milagroso. Há elementos a favor desse remédio, mas não podemos garantir, nesse momento, sua eficácia e ninguém pode dizer que se fizermos mais testes chegaremos a resultados espetaculares", afirma a infectologista Anne-Claude Crémieux, do hospital Saint-Louis, em Paris.

O professor Raoult é um renomado especialista em doenças infecciosas tropicais da faculdade de medicina de Marselha. Até esta terça-feira, ele integrava o comitê científico que assessora o governo francês sobre a covid-19, mas o deixou devido a divergências com seus membros. Ele afirma, no entanto, manter contato direto com o presidente Emmanuel Macron e o ministro da Saúde, Olivier Véran.

O pesquisador de Marselha não é o primeiro a se interessar pela cloroquina, usada contra a malária - objeto de um estudo realizado na China - ou por seu derivado, a hidroxicloroquina, para combater a atual pandemia. Mas Raoult teve um papel importante na divulgação internacional da utilização desses tratamentos.

O presidente americano, Donald Trump, fez uma declaração otimista sobre o uso da hidroxicloroquina, criando uma corrida às farmácias do país. O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, também se entusiasmou com esse medicamento e pediu que um laboratório do Exército ampliasse sua produção.

A Organização Mundial da Saúde pediu prudência e condenou, na segunda-feira, a administração de medicamentos em pacientes infectados pelo novo coronavírus antes que a comunidade científica esteja de acordo sobre sua eficácia, alertando sobre "as falsas esperanças" que eles poderiam suscitar.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária brasileira (Anvisa) classificou a cloroquina e a hidroxicloroquina como medicamentos de controle especial. Em nota, a agência afirmou que "apesar de resultados promissores, não há nenhuma conclusão sobre o benefício do medicamento no tratamento do novo coronavírus."

Corrida às farmácias

As discussões sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina têm levado à forte procura por esses medicamentos em vários países, levando a problemas de abastecimento. O Marrocos chegou a confiscar os dois medicamentos em estoque na filial do laboratório francês Sanofi no país.

Na França, pacientes de lúpus têm alertado sobre a falta do remédio Plaquenil (Plaquinol no Brasil), fabricado pela Sanofi e que tem a hidroxicloroquina como princípio ativo.

Olivier Bogillot, presidente da Sanofi, afirmou que o grupo farmacêutico "se prepara ativamente" para corresponder à demanda se a eficácia do medicamento for comprovada no tratamento do novo coronavírus. Segundo ele, o laboratório possui estoques para tratar 300 mil pacientes imediatamente na França, enquanto se aguarda um eventual sinal verde das autoridades.

Projeto Discovery

O estudo do professor Raoult foi ampliado e está sendo reproduzido em outros hospitais da França, a pedido do governo francês, em um número maior de pacientes.

A hidroxicloroquina é um dos medicamentos testados em maior escala que integram o projeto europeu Discovery, um vasto estudo para descobrir tratamentos contra o novo coronavírus, com 3,2 mil pacientes, utilizando remédios que já existem. Lançado no domingo em sete países, ele é coordenado na França pelo Instituto Nacional de Saúde e de Pesquisa Médica (Inserm).

Pelo menos 800 pacientes hospitalizados na França participam desse estudo europeu que testará também antivirais e tratamentos utilizados contra o vírus ebola, a hepatite C ou ainda a Aids.

A previsão é de que os primeiros resultados do projeto Discovery possam ser divulgados em duas ou três semanas.