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Como sobreviver ao frio extremo

A história de um pescador que naufragou em alto mar revela a notável capacidade do corpo humano de se adaptar a baixas temperaturas - Getty Images
A história de um pescador que naufragou em alto mar revela a notável capacidade do corpo humano de se adaptar a baixas temperaturas Imagem: Getty Images

William Park

BBC Future

04/09/2020 12h38

Heimaey é a maior das Ilhas Westman, um arquipélago ao sul da Islândia habitado sobretudo por papagaios-do-mar. Na península de Stórhöfði, no extremo sul de Heimaey, há um afloramento que adentra o Oceano Atlântico. A estação meteorológica local afirma ser um dos lugares em que mais venta na Europa.

Foi aqui, nas primeiras horas de 12 de março de 1984, que Guðlaugur Friðþórsson, de 23 anos, foi resgatado. Seus pés descalços estavam sangrando devido a cortes profundos causados pelas rochas vulcânicas escondidas sob a neve, e suas roupas, ensopadas de água do mar, estavam congeladas no seu corpo. Já era para Friðþórsson ter morrido, mas algo dentro dele o fez seguir adiante.

A noite estava clara e fria. A temperatura era de -2°C, mas em decorrência dos ventos fortes, a sensação térmica era de mais frio. Apesar da temperatura congelante, ele fez uma breve pausa ao lado de uma banheira cheia de água para ovelhas. Após quebrar o gelo de um centímetro de espessura, começou a beber a água da calha.

Pode parecer estranho que tomar água gelada tenha sido sua principal preocupação em um momento como esse. Mas a desidratação é, sem dúvida, uma preocupação em ambientes frios, uma vez que o ar em temperaturas abaixo de zero é essencialmente seco.

Sem umidade no ar, quando ele respirava, estava perdendo fluido vital dos pulmões. É por isso que sai aquela fumacinha (na verdade, vapor d'água condensado) da boca quando está muito frio.

Mas o frio também parece atenuar nossa sensação de sede, o que significa que muitas pessoas não ingerem água suficiente. Se você estiver se esforçando para se aquecer e ficar com a respiração ofegante como resultado, isso pode te levar rapidamente à desidratação.

"Você costuma ver muitos problemas no frio agravados pela desidratação", diz Mike Tipton, professor de fisiologia da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido.

frio - Getty Images - Getty Images
Quando você se exercita intensamente, não é necessário usar camadas pesadas de roupas para se aquecer
Imagem: Getty Images

Mas, como encontrou água fresca, a desidratação não foi o maior dos problemas enfrentados por Friðþórsson. As roupas molhadas estavam piorando rapidamente sua condição, colocando-o em risco de hipotermia, que ocorre quando a temperatura corporal fica abaixo de 35°C.

Enquanto se exercitava, ele conseguia manter a temperatura interna alta. Mas, como parou para beber água, sua fonte de calor — gerada pelo movimento dos músculos — havia sido interrompida. Se ainda tinha calorias para queimar, ele precisava continuar se movimentando.

"Um homem no frio não é necessariamente um homem com frio", diz Tipton.

"Se você continuar se movendo e estiver minimamente isolado, produzirá calor suficiente para se aquecer."

"E quando você se exercita com intensidade razoavelmente alta, pode fazer isso de bermuda e camiseta no frio", acrescenta.

No entanto, em altitudes elevadas, as pessoas podem ter mais dificuldade para se exercitar. De acordo com Tipton, os alpinistas conseguem dar apenas um passo a cada dez segundos no Everest. A produção de calor nesse ritmo de exercício é mínima — portanto, se manter aquecido é muito difícil.

Há inúmeros registros de alpinistas que sucumbiram ao frio em altitudes elevadas, muitas vezes porque a comunicação via rádio só é mantida até que caiam inconscientes.

Em 1974, os momentos finais de um grupo de alpinistas presos no Pico Lenin durante uma nevasca foram transmitidos para o acampamento base. O grupo, liderado por Elvira Shatayeva, pretendia ser o primeiro formado só por mulheres a escalar a montanha, no atual Tajiquistão.

À medida que o frio aumentava, seus pensamentos ficavam cada vez mais desorientados, e elas contaram o quão fracas estavam se sentindo:

"Outra (alpinista) morreu", Shatayeva comunicou em uma de suas últimas mensagens.

"E eu não tenho forças para apertar o botão do transmissor."

Embora haja evidências de que o calor extremo afeta as habilidades cognitivas das pessoas, é menos claro o que o frio extremo pode fazer com a mente humana.

Em um estudo, os participantes que mergulharam em água com temperatura de 2°C a 3°C por três minutos (tempo suficiente para que alguém desenvolva e se recupere do choque térmico) apresentaram declínio na memória de curto prazo, mas melhora em outras áreas, como no estado de alerta.

Já outra pesquisa mostrou que pessoas que chegaram muito perto da hipotermia (com temperatura corporal a 35,5°C) não sofreram nenhum declínio na função cognitiva.

Ao que parece, nosso cérebro lida muito melhor com o frio do que com o calor. Isso acontece porque as estratégias de sobrevivência do nosso organismo se concentram em manter nossos órgãos vitais funcionando às custas de outras partes do corpo consideradas menos essenciais.

A mais importante de todas, é claro, é o nosso cérebro. Quando Shatayeva e suas colegas alpinistas começaram a apresentar problemas cognitivos, provavelmente outros órgãos já estavam falhando.

Nosso corpo é muito eficaz em reduzir o fluxo sanguíneo nas mãos e nos pés, por meio de um processo chamado vasoconstrição, para preservar a temperatura corporal. Mas, ao fazer isso, deixa as extremidades mais frias.

O tecido humano congela em torno de -0,5°C. À medida que o fluido em nossos tecidos começa a congelar, as paredes celulares se rompem, podendo levar à necrose ou morte das células. Este fenômeno é conhecido como "frostbite".

No entanto, estar prestes a morrer por hipotermia pode aparentemente pregar algumas peças na mente. Em casos raros, algumas pessoas supostamente sentem calor momentos antes de morrer. Alguns corpos de vítimas de hipotermia são encontrados parcialmente vestidos, ou até mesmo totalmente despidos — o que caracteriza o chamado "paradoxo do desnudamento".

Pode ser que, nos últimos momentos antes de morrer, o mecanismo que mantém o sangue abaixo da nossa camada de gordura falhe, fazendo com que ele corra para a superfície da pele e provoque a sensação de calor.

Na realidade, as vítimas perdem de repente uma grande quantidade de calor. Tirar a roupa apenas acelera a rapidez com que morrem.

A maioria desses casos (67% dos homens e 78% das mulheres) envolve pessoas que consumiram álcool, o que é conhecido por inibir nossa resposta termorregulatória.

Em outros casos atípicos de morte por hipotermia, as vítimas foram encontradas escondidas atrás de armários ou debaixo da cama. Esse fenômeno é chamado de "síndrome do esconde e morre" ou "escavação terminal", embora os exemplos de pessoas que tenham cavado buracos para se esconder sejam extremamente raros.

Assim como no "paradoxo do desnudamento", parece que nos últimos momentos antes de morrer as vítimas são tomadas por uma desorientação. Cerca de um quarto dessas pessoas também se despiram antes de se esconder.

Em geral, esses indivíduos que morreram congelados e paradoxalmente tiraram as roupas sucumbiram ao frio enquanto voltavam para casa à noite usando trajes inadequados, às vezes bêbados.

Para qualquer pessoa em situação de sobrevivência, há três frentes de defesa que protegem contra o frio:

"Roupas ou equipamentos são a primeira linha de defesa, abrigo é a segunda, e a terceira é o fogo", diz Jessie Krebs, ex-instrutora de treinamento do programa Sobrevivência, Evasão, Resistência e Fuga (Sere) da Força Aérea dos EUA.

"As pessoas pulam direto para o fogo, o que é um erro. Se não tiverem sucesso, morrem tentando iniciar um incêndio."

O americano Tyson Steele, de 30 anos, colocou essa teoria na prática no fim de 2019, quando a cabana em que ele morava no remoto Vale Susitna, no Alasca, foi destruída pelo fogo.

Para se proteger do frio, ele dormia enrolado nas cobertas, enquanto o fogo ardia no fogão à lenha da cabana. Mas uma pequena brasa subiu pela chaminé e pousou na lona do telhado, onde ardeu silenciosamente.

Ao sentir a presença do fogo, Steele levantou correndo a tempo de ver as labaredas saindo do telhado. Dentro de alguns minutos, a cabana inteira estava em chamas.

Foi o começo do que se tornaria uma provação de três semanas para Steele, isolado a 30 quilômetros da cidade mais próxima, em condições climáticas abaixo de zero, no deserto do Alasca. Nos 20 dias que se seguiram, ele travou uma verdadeira batalha para se manter aquecido e vivo na esperança de ser resgatado.

Incapaz de se deslocar para muito longe na neve profunda, seu plano foi permanecer no local, o que, naquelas circunstâncias, não era má ideia.

Ele conseguiu salvar alguns alimentos enlatados e cobertores, construiu um abrigo com os escombros de sua cabana, e acendeu uma fogueira.

Naquele momento, a perspectiva de Steele era bastante positiva; ele tinha providenciado suas três linhas de defesa na ordem certa. Escreveu então uma mensagem de SOS na neve, ao lado do seu abrigo, e esperou por ajuda.

Enquanto estava na cabana, ele mantinha contato regular com a família e publicava posts nas redes sociais. Quando ele parou de se comunicar, a família ficou preocupada. Para sorte de Steele, seu silêncio foi notado e acabou sendo sua salvação — e não a mensagem de SOS que escreveu na neve.

"O sinal SOS é o que a maioria das pessoas conhece, mas o lado negativo é que é muito cheio de curvas", diz Krebs.

"A maior parte da natureza é curvilínea — são colinas, lagos e córregos arredondados, de modo que as curvas se misturam."

Nas forças armadas, Krebs aprendeu a usar a letra "V" para pedir ajuda ou um "X" para solicitar especificamente assistência médica.

As longas linhas retas se destacam em uma encosta. Também leva menos tempo para criar duas linhas retas de 10 metros de comprimento em comparação com dois "S" e um "O", cada um com 3 metros.

O momento do resgate de Steele, filmado de um helicóptero, mostra o americano acenando com os dois braços para o alto, na frente da mensagem de SOS.

Embora acenar com os dois braços seja um sinal amplamente conhecido como pedido de resgate (acenar com apenas um braço pode ser mal interpretado como uma saudação), Krebs diz que a maneira mais eficaz de comunicar que está em apuros é deitar no chão.

Desde que você tenha certeza de que o piloto te viu, deitar rapidamente comunica que você está ferido ou doente e, portanto, precisa de ajuda com urgência.

Outras formas de comunicação incluem o uso de espelhos ou sinais de fumaça — a água presente nos galhos e folhas da vegetação gera uma fumaça branca quando queimada, o que pode ser útil em florestas escuras.

A queima de borracha ou de pneus de carro pode, por sua vez, produzir uma fumaça preta que se destaca da neve. Mas Krebs alerta que tudo isso só é realmente útil se houver uma aeronave na área.

Steele afirmou mais tarde que não tinha treinamento formal de sobrevivência, mas adquiriu algum conhecimento assistindo a vídeos do YouTube.

Alguns fósforos, uma vela e cascas de bétula o ajudaram a acender uma fogueira, que ele usou para se manter seco.

Ser capaz de manter as roupas secas é essencial para aumentar suas chances de sobrevivência, diz Krebs. Na pior das hipóteses, roupas molhadas podem ser torcidas.

Mas no caso de Friðþórsson, ele já estava muito além desse estágio.

Friðþórsson caiu no mar a leste da península de Stórhöfði após um acidente com seu barco de pesca, o Hellisey VE 503. Às 22h, a rede de arrasto ficou presa no fundo do oceano, virando a embarcação tão rápido que a tripulação não teve nem tempo de enviar um pedido de socorro.

Os cinco pescadores a bordo foram atirados ao mar. Três deles conseguiram subir na quilha do barco, que estava virada para cima — dois nunca voltaram à superfície.

Os sobreviventes se viram então a 5 km da costa, no meio do mar a uma temperatura de 5°C. Uma pessoa normal sobrevive, em média, por cerca de 75 minutos quando a temperatura da água é menor que 6ºC.

São poucos os relatos de pessoas que sobrevivem por mais tempo. Em testes de laboratório, participantes começaram a sofrer efeitos adversos em 20 ou 30 minutos, antes de serem retirados da água. Nadar 5 km naquelas condições levaria horas.

A água do mar não é capaz de ficar tão fria quanto o ar — ela congela a cerca de -1,9°C. Mas na Islândia, em março, o mar está um pouco acima do ponto de congelamento. Em teoria, é possível desenvolver "frostbite" na água fria, mas é muito pouco provável.

Na quilha do barco, no entanto, a temperatura do ar estava gélida. E as roupas molhadas dos pescadores estavam piorando rapidamente a sensação de frio. Ficar parado não era uma opção.

"Quando você sai da água, acontece o resfriamento evaporativo", diz Tipton.

"É uma maneira realmente potente de perder calor do corpo."

Normalmente, você se despiria e vestiria roupas secas. Mas, na ausência dessa possibilidade, uma opção seria se abrigar em um grande saco plástico, como os usados em kits para sobrevivência, no intuito de reduzir o resfriamento evaporativo e por convenção.

"Se você molhar alguém a 4°C, e a pessoa tiver um litro de água nas roupas; e se toda essa água evaporar, haverá uma queda na temperatura corporal dela de 10°C", explica Tipton.

"Considerando o mesmo cenário, se você envolver a pessoa em um saco plástico, ela poderia usar o corpo para aquecer a água. Como está contida no saco, não pode evaporar. E essa pessoa perderia meio grau, ou seja, ficaria 20 vezes melhor."

Tipton afirma que uma das grandes vitórias da sua equipe na Universidade de Portsmouth foi incentivar a Polícia Montada Real do Canadá a trocar os onerosos cobertores espaciais de alumínio pelos baratos e resistentes sacos de sobrevivência de plástico.

Os cobertores espaciais, do tipo que dão a atletas no fim de uma maratona, são bons para proteger contra a perda de calor por radiação, mas menos eficientes quando se trata de perda de calor por evaporação, uma vez que não retêm líquido. Em uma situação de sobrevivência, uma sacola plástica seria muito mais útil.

Sem uma sacola plástica de sobrevivência, exposto ao ar congelante, e com a água evaporando do seu corpo, Friðþórsson tinha um risco muito alto de sucumbir ao frio.

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Tyson Steele acena para o helicóptero, cercado pelos destroços da cabana que pegou fogo
Imagem: Alaska State Troopers

Após uma breve reflexão, os três homens decidiram arriscar nadar. Em 10 minutos, os outros dois morreram — e só restou Friðþórsson, que levou seis horas para nadar até a costa. Mas como ele conseguiu sobreviver por muito mais tempo do que os colegas?

Os primeiros minutos após serem jogados no mar foram críticos. A água fria retira o calor do corpo mais rápido do que o ar na mesma temperatura.

Os pescadores que sucumbiram primeiro provavelmente não conseguiram controlar a resposta ao choque térmico. Ofegantes e em pânico, eles devem ter inalado água. Friðþórsson, por outro lado, conseguiu controlar sua respiração.

Mais tarde, ele contou que manteve a lucidez durante todo o trajeto a nado. Decidiu, inclusive, voltar ao mar para nadar até outro ponto da costa, após constatar que o penhasco onde ele havia "aportado" era muito difícil de ser escalado. A presença de espírito para fazer isso provavelmente salvou sua vida.

Finalmente, Friðþórsson chegou a uma vila e, por volta das 7h da manhã de segunda-feira, bateu à porta de uma casa. Ele foi levado para o hospital, com cortes e desidratação. Não havia sinal de que havia sofrido de hipotermia.

Friðþórsson, hoje com 58 anos, é um homem grande. Ele tem 1,93 m de altura e pesava 125 kg quando estava na faixa de 20 anos. Uma camada generosa de gordura com cerca de dois centímetros e meio de espessura envolvia seu abdômen. A gordura corporal não só o mantinha isolado, como também era uma fonte vital de energia.

Mesmo assim, sua capacidade para se manter aquecido era excepcional. Pesquisadores que realizaram testes em Friðþórsson, após a provação, concluíram que ele deve ter sido capaz de manter a temperatura corporal quase normal durante todo o percurso a nado.

Ao contrário de outros sobreviventes em condições extremas, Friðþórsson não transformou sua história em um negócio lucrativo. Há apenas um filme islandês independente de 2012 sobre a sua provação. E as roupas que ele usava na ocasião estão agora expostas no Eldheimar Museum, em Heimaey, em uma pequena mostra sobre a história da pesca na ilha — um reconhecimento modesto à sua história extraordinária.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.