Por que a arrogância é um mal contagioso
No fim dos anos 1980, o psicólogo James Reason quis entender o raciocínio falho por trás dos acidentes de trânsito.
Ele foi às ruas e estacionamentos de supermercados ao redor de Manchester, no Reino Unido, e pediu a um total de 520 motoristas que estimassem o número de vezes que cometeram certas infrações.
Eles deixavam de checar regularmente o espelho retrovisor, por exemplo? Ou pegavam a pista errada ao se aproximar de um cruzamento?
Além da lista de erros e violações, os participantes também foram solicitados a avaliar sua habilidade para dirigir em comparação com a dos outros — se eram melhores ou piores do que a média.
Dada a quantidade de tempo que muitas pessoas passam ao volante, era de se esperar que a maioria dos motoristas tivesse pelo menos alguma noção de suas próprias habilidades. No entanto, Reason descobriu que isso não poderia estar mais longe da verdade.
Dos 520 motoristas, apenas cinco se consideraram piores do que a média — menos de 1%. O restante — inclusive aqueles que eram motoristas terríveis e cometiam erros constantemente — achava que era pelo menos tão bom quanto qualquer outro, e muitos acreditavam que eram muito melhores.
Foi, basicamente, uma ilusão em massa que os deixou completamente cegos para suas próprias falhas.
Três décadas depois, psicólogos documentaram níveis de confiança igualmente ilusórios para vários atributos e habilidades diferentes. Temos a tendência de pensar que somos mais inteligentes, criativos, atléticos, confiáveis, atenciosos, honestos e amigáveis
"As evidências são extremamente, até mesmo excepcionalmente, fortes", diz Ethan Zell, professor associado de psicologia da Universidade da Carolina do Norte em Greensboro, nos EUA, que conduziu recentemente um estudo de meta-análise das pesquisas realizadas até agora.
"Basicamente, nunca falha. Se você der às pessoas um questionário em que elas devem se avaliar em relação à média, quase todas pensam que estão acima da média em quase tudo."
As consequências podem ser sérias. Como o professor Reason sugeriu, o excesso de confiança em nossas próprias habilidades ao volante pode levar a uma direção perigosa e a acidentes graves.
Na medicina, isso pode levar a um erro fatal de diagnóstico; no direito, pode provocar falsas acusações e erros judiciais; e nos negócios, a arrogância gerencial coloca as empresas diante de um risco maior de cometer fraudes e declarar falência.
Não é de se admirar, portanto, que o excesso de confiança seja frequentemente conhecido como a "mãe de todos os vieses".
O cientista Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2002, afirmou que, se ele tivesse uma varinha mágica que pudesse mudar uma coisa na psicologia humana, ele eliminaria nosso complexo de superioridade.
Agora, uma nova pesquisa fascinante de Joey Cheng, professora assistente de psicologia na Universidade de York, no Canadá, mostra que o excesso de confiança pode ser contagioso.
"Se você for exposto a uma pessoa com excesso de confiança você se torna mais suscetível a superestimar sua própria posição relativa", diz ela. Uma tendência que pode fazer com que o pensamento perigosamente ilusório se espalhe por uma equipe.
Confiança em cascata
Cheng diz que se inspirou em relatos sobre o comportamento em Wall Street, onde a arrogância parece prevalecer.
"Quando você vai para outros setores como educação, não costuma ouvir professores se descreverem da mesma forma."
Essas diferenças a levaram a se perguntar se certos grupos de pessoas poderiam realmente encorajar o desenvolvimento de um ego inflado em outras.
Algumas pesquisas anteriores sugeriram essa possibilidade, mostrando que o excesso de confiança dos banqueiros tende a aumentar à medida que passam mais tempo na profissão, o que faria sentido, se eles estivessem "captando" o comportamento de seus colegas — mas Cheng queria testar essa ideia em laboratório.
Seu primeiro experimento teve duas etapas. Primeiramente, os participantes foram convidados individualmente a olhar retratos de pessoas e tentar adivinhar várias personalidades com base em suas expressões — uma tarefa que alguns indivíduos são capazes de desempenhar com razoável precisão.
Para medir sua confiança, os participantes foram solicitados a avaliar a percepção de suas habilidades em comparação com o resto do grupo.
Em seguida, eles tiveram que fazer a mesma tarefa em pares e, na sequência, foram novamente convidados a avaliar suas próprias habilidades, permitindo a Cheng ver se a arrogância de uma pessoa contagiava a outra.
De fato, ela descobriu que os participantes mais humildes eram muito mais propensos a aumentar suas próprias avaliações, uma vez que eram colocados com um parceiro excessivamente confiante.
"Foi notável", diz Cheng.
Os resultados do segundo experimento foram ainda mais impressionantes. Mais uma vez, eles tiveram que trabalhar em uma tarefa de percepção simples, que envolvia adivinhar o peso de alguém a partir de sua foto.
Desta vez, porém, os participantes não trabalharam em pares reais, mas foram apresentados a alguns exemplos de respostas de outro participante. Na realidade, as respostas eram falsas, o que permitiu a Cheng criar uma persona que estava claramente iludindo a si mesma.
Os participantes poderiam ter visto o excesso de confiança ostensivo do outro como um sinal de alerta; mas, em vez disso, eles simplesmente imitaram o comportamento.
Ser exposto a alguém claramente excessivamente confiante inflou a própria percepção dos participantes em cerca de 17%. E aconteceu exatamente o oposto com aqueles que foram apresentados ao perfil de um participante mais realista — eles tendiam a subestimar sua própria avaliação em cerca de 11%.
Em experimentos posteriores, Cheng confirmou que a ilusão de superioridade, captada a partir de um colega, pode ser transmitida a outra pessoa — provocando uma espécie de "cascata" que pode permear um grupo a partir de uma única fonte.
Ela também documentou um "efeito de transbordamento ", de modo que, quando você se torna excessivamente confiante em uma área, pode se tornar mais arrogante em outra.
Para piorar a situação, as consequências podem durar muito tempo depois da interação — apenas alguns minutos de exposição a uma pessoa arrogante distorceu as avaliações dos próprios participantes dias depois.
Zell está impressionado com as descobertas.
"Acho que a pesquisa é muito interessante e bem conduzida e nos ajuda a entender as origens do excesso de confiança e por que é maior em alguns grupos do que em outros", diz ele.
O especialista suspeita que isso decorra da criação de normas sociais.
"Ver os outros exibindo um comportamento excessivamente confiante pode fazer com que pareça mais valorizado ou apropriado culturalmente."
Mecanismos misteriosos
Os resultados de Cheng se encaixam em muitos outros estudos de conformidade, incluindo nossas memórias de um evento compartilhado, nossas percepções de beleza e nossas opiniões políticas.
"Apenas por ser exposto a alguém, você é mais propenso a adquirir seus modos de se comportar e pensar", diz ela.
É fácil imaginar como isso pode acontecer em um ambiente de trabalho, acrescenta.
"Digamos que você trabalhe na área financeira. Quando começou, você era bastante equilibrado, mas à medida que você penetra nesse ambiente, você vê que algumas pessoas tendem a fazer declarações arrogantes e aparentam ser incrivelmente confiantes na maneira como falam e se comunicam não verbalmente. E você, por sua vez, pode se tornar meio que um clone dessa pessoa."
Em seu artigo, Cheng cita a empresa de energia Enron como um exemplo potencial de como essa dinâmica pode proliferar nas organizações.
A corporação já foi a sétima maior empresa dos Estados Unidos, mas declarou falência em 2001 após denúncias de fraude e corrupção generalizadas.
A "cultura da arrogância" da Enron agora é bem conhecida e virou um caso exemplar. Um ex-funcionário afirmou que "não há dúvida de que o pessoal da Enron pensava arrogantemente que era mais inteligente do que todo mundo".
"Nossas descobertas sugerem que parte disso [excesso de confiança] pode ser devido a esse efeito de contágio social", diz Cheng.
"E que pode ter levado muitos indivíduos a adotar práticas questionáveis que contribuíram para sua ruína."
Diante desses resultados, Cheng sugere que as organizações repensem que tipos de comportamento dos funcionários recompensam.
"Líderes e gerentes precisam estar muito atentos aos efeitos de certos indivíduos sobre outros, porque seu excesso de confiança pode realmente se espalhar amplamente."
Essas descobertas também podem orientar as decisões de contratação. Além de serem mais realistas com eles próprios, os funcionários mais humildes também podem moderar o excesso de confiança de toda a equipe.
"Eles podem ajudar a trazer o grupo de volta à realidade."
A nível pessoal, você pode pelo menos prestar um pouco mais de atenção às suas próprias atitudes — incluindo sua percepção de como está conduzindo seu vecíulo.
Sempre que se gabar infundadamente de suas habilidades, você pode estar enviando ondas de excesso de confiança por toda a sua rede social, sustentando sutilmente a ilusão em massa que James Reason ajudou a documentar anos atrás.
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