De onde vem o câncer e por que não desapareceu com a evolução?
Devemos enxergar a doença com os olhos de Charles Darwin, pai da teoria da evolução, dizem os autores deste artigo de opinião.
O câncer levanta uma infinidade de questões para os biólogos, muitas delas ainda sem resposta. Como podemos explicar as origens da doença? Por que é tão difícil de curar? Por que a vulnerabilidade ao câncer persiste na maioria dos organismos multicelulares?
Os enfoques baseados na explicação dos mecanismos dessa doença e na pesquisa clínica não são suficientes para abordar essas perguntas.
Devemos olhar para o câncer a partir de uma nova perspectiva, adotando uma visão evolutiva. Em outras palavras, devemos enxergar o câncer pelos olhos de Charles Darwin, pai da teoria da evolução.
Há alguns anos, o esforço conjunto de biólogos evolucionistas e oncologistas vem fomentando reflexões que se traduzem em avanços transversais benéficos para ambas as disciplinas, ao mesmo tempo que mudam nossa compreensão da doença.
Como a evolução dos organismos multicelulares abre caminho para o câncer
O câncer afeta todo o reino animal multicelular. A razão é que se trata de uma doença ancestral relacionada ao aparecimento de metazoários (animais compostos por várias células, diferentemente dos protozoários que são formados por uma única célula), há mais de 500 milhões de anos.
O aparecimento de organismos tão complexos exigiu o desenvolvimento de altos níveis de cooperação entre a variedade de células que os compõem.
Na verdade, essa cooperação é sustentada por comportamentos complementares e altruístas, em particular pela apoptose ou suicídio celular (pelo qual uma célula ativa sua autodestruição ao receber um determinado sinal) e pela renúncia à reprodução direta por parte de toda célula que não seja uma célula sexual.
Ou seja, a evolução para entidades multicelulares estáveis foi produzida pela seleção de adaptações que, por um lado, facilitavam o funcionamento coletivo e, por outro, reprimiam os reflexos unicelulares ancestrais.
O câncer representa uma ruptura dessa cooperação multicelular, seguida pela aquisição de adaptações que permitem que essas células "renegadas" se aperfeiçoem em seu próprio modo de vida.
Em outras palavras, as células malignas começam a "trapacear".
Podem fazer isso por terem sofrido mutações genéticas (modificações na sequência dos genes) ou epigenéticas (modificações que alteram a expressão dos genes e que, além de transmissíveis, são reversíveis, ao contrário das mutações genéticas), ou ainda ambas, o que confere a elas um valor seletivo mais alto em comparação com as células de comportamento cooperativo.
Pode consistir, por exemplo, em vantagens de crescimento, multiplicação, etc.
Da mesma forma, é imperativo que as células que carregam essas modificações se situem em um microambiente favorável à sua proliferação.
Se essas "rebeliões celulares" não são suprimidas adequadamente pelos sistemas de defesa do corpo (como o sistema imunológico), a abundância de células cancerosas pode aumentar localmente.
Consequência: os recursos se esgotam e essas células podem iniciar então comportamentos individuais ou coletivos de dispersão e colonização em direção a novos órgãos, as conhecidas metástases, responsáveis lamentavelmente pela maioria das mortes por câncer.
Dessa forma, em poucos meses ou anos, uma única célula cancerosa pode gerar um "ecossistema" complexo e estruturado, o tumor sólido (comparável a um órgão funcional), assim como metástases mais ou menos disseminadas pelo organismo.
Um aspecto intrigante dessa doença consiste no número significativo de semelhanças entre os atributos das células cancerosas provenientes de diferentes órgãos, indivíduos e até espécies, o que sugere que os processos que acontecem em cada caso são semelhantes.
Porém, cada câncer evolui como uma nova entidade, já que, tirando os cânceres transmissíveis mencionados anteriormente, os tumores sempre desaparecem junto com seus hospedeiros, sem transmitir suas inovações genéticas nem fenotípicas.
Então, como explicar essas semelhanças?
Persistência do câncer ao longo do tempo evolutivo
Do ponto de vista evolutivo, há duas hipóteses que podem explicar o surgimento do câncer e a semelhança de seus atributos.
A teoria do atavismo explica o câncer como um retorno às capacidades anteriores das células, entre as quais se encontra a liberação de um mecanismo de sobrevivência excelentemente preservado, sempre presente em todas as células eucarióticas e, portanto, em todos os organismos multicelulares.
Acredita-se que a seleção desse antigo mecanismo tenha ocorrido durante o período Pré-Cambriano, que começou há 4,55 bilhões de anos e terminou há 540 milhões de anos.
Durante esse período, que viu surgir a vida em nosso planeta, as condições ambientais eram muito diferentes das de hoje e, muitas vezes, desfavoráveis.
As forças seletivas que atuavam sobre os organismos unicelulares favoreceram as adaptações para a proliferação celular.
Algumas dessas adaptações, selecionadas ao longo da vida unicelular, permaneceram para sempre presentes, mais ou menos ocultas em nossos genomas.
Quando sua expressão escapa dos mecanismos de controle, começa uma luta entre os traços unicelulares ancestrais e os traços multicelulares atuais ? e é aí que pode surgir um câncer.
Além disso, esta hipótese também poderia explicar por que as células cancerosas se adaptam tão bem a ambientes ácidos e pobres em oxigênio (anóxicos), uma vez que essas condições eram comuns no período Pré-Cambriano.
A segunda hipótese envolve um processo de seleção somática —as células somáticas agrupam todas as células de um organismo com exceção das células sexuais —, que leva a uma evolução convergente, ou seja, ao aparecimento de traços análogos.
Esta hipótese sugere que o surgimento dos traços celulares que caracterizam as células "traiçoeiras" passa por uma forte seleção cada vez que um novo tumor aparece, independentemente de quais sejam as causas imediatas desses traços.
Esses processos de seleção somática, ao ocorrer em ambientes regidos em grande parte pelas mesmas condições ecológicas (como as que reinam dentro de organismos multicelulares), levariam a uma evolução convergente.
Isso poderia explicar as semelhanças que observamos por meio da diversidade do câncer. Não podemos esquecer que só vemos cânceres que conseguem se desenvolver, mas não sabemos quantos "candidatos" fracassaram ao não conseguir adquirir as adaptações necessárias no momento certo.
Essas duas hipóteses não são excludentes: o reaparecimento de um mecanismo ancestral pode ser seguido por uma seleção somática que culmina em uma evolução convergente.
Seja qual for a razão da origem do câncer, há uma questão que permanece sem resposta: se essa doença costuma causar a morte do hospedeiro, por que a seleção natural não foi mais eficaz em tornar os organismos multicelulares completamente resistentes ao câncer?
Incidência de câncer não é maior em animais grandes
Os mecanismos de supressão do câncer são numerosos e complexos. Cada divisão celular pode causar mutações somáticas que alteram os mecanismos genéticos que controlam a proliferação celular, a reparação do DNA e a apoptose, afetando assim o controle do processo de formação do câncer (carcinogênese).
Se cada divisão celular envolve uma certa probabilidade de produzir uma mutação cancerígena, o risco de desenvolver câncer deveria ser em função do número de divisões celulares ao longo da vida de um organismo.
No entanto, as espécies de grande porte e que vivem mais não têm mais câncer do que as pequenas, que vivem menos tempo.
Nas populações naturais de animais, a frequência de câncer varia, em geral, entre 0% e 40% para todas as espécies estudadas —e não há relação com a massa corporal.
Em elefantes e camundongos, são observados níveis de prevalência bastante semelhantes de câncer, apesar de os elefantes desenvolverem muito mais divisões celulares ao longo de suas vidas do que os camundongos.
Esse fenômeno é conhecido como "paradoxo de Peto".
A explicação para esse paradoxo está no fato de que as forças evolutivas selecionaram mecanismos de defesa mais eficazes nos animais grandes do que nos pequenos, o que permite reduzir o risco associado ao câncer devido ao aumento do tamanho.
Por exemplo, os elefantes têm vinte cópias do gene supressor de tumores TP53, enquanto os humanos dispõem de apenas duas.
Encontramos exceções notáveis a essa tendência geral, como o caso de espécies de pequeno porte com longevidade fora do normal. Essas espécies também dificilmente desenvolvem câncer.
Um bom exemplo é o do rato-toupeira-pelado (Heterocephalus glaber), uma espécie cujos indivíduos vivem muito tempo (espécie longeva) e não desenvolvem tumores espontâneos, com exceção de alguns casos de câncer detectados de forma circunstancial.
Uma doença que se manifesta tardiamente
Lembremos também que a eficácia das defesas contra o câncer diminui uma vez que os organismos realizam o essencial a sua reprodução, já que as pressões evolutivas são menores nessa fase da vida.
Essa perda de eficácia, junto com o acúmulo de mutações ao longo do tempo, explica por que a maioria dos cânceres (mama, próstata, pulmão, pâncreas...) aparece na segunda metade da vida.
Uma das principais implicações evolutivas é que se, a partir de uma perspectiva darwiniana, o câncer não é uma preocupação relevante quando se manifesta após a fase reprodutiva, isso também significa que nossas defesas terão sido otimizadas pela seleção natural, para não erradicar sistematicamente os processos oncogênicos, mas para controlá-los enquanto temos capacidade reprodutiva.
No final, essas defesas de baixo custo, cujo objetivo é resistir diante dos tumores, acabam sendo mais vantajosas para garantir o sucesso reprodutivo do que como estratégias de erradicação sistemática, que seriam sem dúvida muito mais onerosas.
O sistema imunológico, por exemplo, não trabalha a troco de nada...
Em geral, os seres vivos são regidos por relações de compromisso, trade-offs em inglês, o que significa que qualquer investimento em uma função requer uma série de recursos e energia que não estarão mais disponíveis para outras funções.
Nossas defesas contra doenças, incluindo o câncer, não estão fora dessa regra operacional.
Infelizmente, essas defesas de baixo custo contra o câncer acabam se transformando em bombas tardias... Em outras palavras, a lógica darwiniana nem sempre nos leva a resultados que correspondem às nossas expectativas como sociedade em termos de saúde!
Embora a maioria das mutações cancerígenas ocorra em células somáticas ao longo da vida, há casos raros de câncer causados por mutações hereditárias na linha germinal, aquela que produz células sexuais.
Essas mutações congênitas, às vezes, são mais frequentes do que poderíamos esperar do equilíbrio mutação-seleção.
Este paradoxo pode ser explicado por vários processos evolutivos. Por exemplo, foi sugerido que a seleção natural provavelmente não agirá sobre essas mutações se, mais uma vez, seus efeitos negativos à saúde se manifestarem somente após o término do período reprodutivo.
Por outro lado, é possível recorrer à teoria da pleiotropia antagonista. Essa teoria prevê que certos genes têm efeitos contrários sobre a probabilidade de sobrevivência/reprodução de acordo com a idade: seus efeitos seriam positivos no início da vida e negativos no restante.
Se o efeito positivo inicial for significativo, é possível que a seleção retenha essa variante genética, mesmo que cause uma doença fatal mais tarde.
Por exemplo, as mulheres que têm uma mutação nos genes BRCA1 e BRCA2 apresentam um risco significativamente maior de desenvolver câncer de mama ou de ovário, mas essas mutações parecem estar relacionadas com uma fertilidade maior.
Implicações em termos de tratamento
O câncer, verdadeiro fardo das populações humanas, é antes de tudo um fenômeno regido por processos evolutivos, desde sua origem na história da vida até seu desenvolvimento em tempo real em um paciente.
A tradicional separação entre a oncologia e a biologia evolutiva, portanto, deve desaparecer, uma vez que limita nossa compreensão da complexidade dos processos que culminam na manifestação da doença.
Esta nova perspectiva sobre o câncer pode ser útil para o desenvolvimento de soluções terapêuticas inovadoras que limitem os problemas associados às estratégias de tratamento atualmente disponíveis.
Essas terapias de altas doses, que buscam matar o máximo de células malignas, muitas vezes acabam causando a proliferação de células resistentes. Por outro lado, a terapia adaptativa, profundamente enraizada na biologia evolutiva, pode ser uma abordagem alternativa.
Essa estratégia consiste em reduzir a pressão associada às terapias de altas doses com o objetivo de eliminar apenas parte das células cancerosas sensíveis.
Trata-se de manter um nível suficiente de competição entre as células cancerosas sensíveis e as células cancerosas resistentes, a fim de evitar ou limitar a proliferação irrestrita de células resistentes.
Um problema que não se limita ao ser humano
Até recentemente, a oncologia raramente adotava os conceitos da biologia evolutiva para melhorar a compreensão dos processos malignos.
Da mesma forma, ambientalistas e biólogos evolucionistas dificilmente se interessavam pela existência desses fenômenos em suas pesquisas sobre os seres vivos.
Mas as coisas mudam, e o estudo do câncer —ou melhor, dos processos oncogênicos como um todo — na fauna selvagem está despertando um entusiasmo cada vez maior na comunidade de ambientalistas e biólogos evolucionistas.
De fato, hoje, o câncer se mostra claramente como um modelo biológico pertinente para estudar a evolução dos seres vivos, assim como um fenômeno biológico importante para compreender as várias facetas da ecologia das espécies animais e suas consequências no funcionamento dos ecossistemas.
Embora nem sempre evoluam para formas invasivas ou metástases, os processos tumorais são onipresentes nos metazoários e há estudos teóricos que sugerem que, provavelmente, nestes últimos tenham influência em variáveis-chave na ecologia, como os traços da história de vida, as habilidades competitivas, a vulnerabilidade a parasitas e predadores e até mesmo a capacidade de se dispersar.
Esses efeitos são provenientes tanto das consequências patológicas dos tumores quanto dos custos associados ao funcionamento dos mecanismos de defesa dos hospedeiros.
Compreender as consequências ecológicas e evolutivas das interações tumor-hospedeiro também se tornou um tópico de pesquisa de referência na ecologia e na biologia evolutiva nos últimos anos.
Essas questões científicas são ainda mais pertinentes quando praticamente todos os ecossistemas do planeta, especialmente os meios aquáticos, estão contaminados hoje em dia por substâncias de origem antrópica e, muitas vezes, mutagênicas.
Portanto, é essencial melhorar a compreensão das interações tumor-hospedeiro e seus efeitos em cascata dentro das comunidades, a fim de prever e antecipar as consequências das atividades humanas no funcionamento dos ecossistemas e na manutenção da biodiversidade.
* Audrey Arnal é pesquisadora de pós-doutorado, laboratório MIVEGEC (UMR IRD 224-CNRS 5290 -Universidade de Montpellier, França), Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD).
Benjamin Roche é diretor de pesquisa do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD).
Frédéric Thomas é diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), laboratório MIVEGEC (UMR IRD 224-CNRS 5290-Universidade de Montpellier, França).
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.