Por que se deslumbrar com o mundo pode ajudar memória e nos deixar mais generosos
A busca intencional da sensação de deslumbramento pode aumentar a criatividade e reduzir a ansiedade, segundo estudos
Sempre que Ethan Kross entra em um ciclo mental de preocupação e pensamentos negativos, ele caminha cinco quadras até o jardim público do seu bairro para contemplar uma das magníficas árvores do local e o incrível poder da natureza.
Se não puder ir até o jardim, ele passa alguns momentos pensando sobre as fabulosas possibilidades oferecidas pelas aeronaves e pelas viagens espaciais. "Fico pensando em como nós estávamos tentando acender fogueiras, apenas alguns milhares de anos atrás, e agora podemos aterrissar com segurança em outro planeta", afirma ele.
O propósito, neste caso, é evocar o deslumbramento - que ele define como "a maravilhosa sensação de encontrar algo que não podemos explicar facilmente".
Os hábitos de Kross são baseados em evidências científicas. Como professor de psicologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, ele sabe que as sensações de deslumbramento podem ter influência muito profunda sobre a mente - aumentando nossa memória e criatividade, além de nos inspirar a agir de forma mais altruísta com relação às pessoas à nossa volta. Eles podem também ter profundo impacto sobre a nossa saúde mental, permitindo colocar nossas ansiedades em perspectiva.
Como a maioria de nós somente ficamos admirados esporadicamente, ainda não conhecemos seus benefícios. Quando estamos tristes, podemos ser mais propensos a buscar alívio em uma comédia, por exemplo - procurando sentimentos de diversão que são bem menos poderosos.
Mas gerar o deslumbramento pode trazer uma grande mudança mental. Por isso, ele pode ser uma ferramenta essencial para melhorar nossa saúde e bem-estar. E existem muitas formas de cultivar essa emoção na nossa vida diária.
Pequenos terremotos
Michelle Shiota, professora de Psicologia Social da Universidade do Estado do Arizona, nos Estados Unidos, foi uma das pioneiras na descoberta dos benefícios do deslumbramento. O seu interesse específico reside nas formas em que ele pode remover nossos "filtros mentais" para incentivar maior flexibilidade de pensamento.
Vamos considerar a memória. Se alguém nos contar uma história, normalmente nos lembramos do que achamos que devemos ter escutado e não dos detalhes específicos do evento. Isso pode indicar que perdemos elementos incomuns ou inesperados que acrescentam a clareza e especificidade necessária para entendermos o que aconteceu. Podemos até formar falsas memórias de eventos inexistentes, mas que achamos que poderiam ter acontecido nesse tipo de situação.
Alguns anos atrás, Shiota decidiu estudar se evocar uma sensação de deslumbramento poderia evitar isso. Ela pediu aos participantes, em primeiro lugar, que assistissem a um dentre três vídeos: um filme científico que inspira deslumbramento, levando os espectadores em uma viagem do espaço sideral até partículas subatômicas; um filme animador sobre um patinador artístico que ganhou uma medalha de ouro olímpica; ou um filme neutro sobre a construção de uma parede de blocos de concreto.
Em seguida, os participantes ouviram uma história de cinco minutos descrevendo um casal que saía para um jantar romântico e responderam perguntas sobre o que eles haviam ouvido. Algumas dessas perguntas referiam-se a eventos tipicamente esperados em qualquer refeição ("o garçom serviu o vinho?"), enquanto outras se referiam a informações incomuns, como se o garçom estava usando óculos.
Confirmando a hipótese formulada por Shiota, os participantes que haviam assistido ao filme científico lembravam-se com mais precisão dos detalhes que haviam ouvido que aqueles que haviam assistido ao filme neutro ou animador.
Qual seria o motivo? Shiota indica que o cérebro está constantemente formando previsões do que acontecerá em seguida. Ele usa suas experiências para formar estímulos mentais que orientam nossa percepção, atenção e comportamento.
Experiências que inspiram o deslumbramento —com sua sensação de grandiosidade, assombro e perplexidade - podem confundir essas expectativas, criando um "pequeno terremoto" na mente que faz com que o cérebro redetermine suas premissas e preste mais atenção ao que realmente está à sua frente.
"A mente reprograma seu 'código de previsão' para simplesmente olhar em volta e coletar informações", afirma ela. Além de ampliar nossa memória para detalhes, isso pode melhorar o pensamento crítico, segundo Shiota, pois as pessoas prestam mais atenção às nuances específicas de um argumento, em vez de confiar nas suas intuições para se convencerem ou não.
Essa capacidade de abandonar as premissas e observar o mundo e seus problemas de uma perspectiva nova poderá também explicar por que essa emoção contribui para maior criatividade. Existe um estudo de Alice Chirico e seus colegas da Universidade Católica do Sagrado Coração em Milão, na Itália, publicado em 2018.
Os participantes que caminharam por uma floresta em realidade virtual tiveram notas mais altas em testes de pensamento original que aqueles que observaram um vídeo mais comum de galinhas passeando na grama. Os participantes inspirados pelo deslumbramento foram mais inovadores quando perguntados sobre como melhorar um brinquedo infantil, por exemplo.
Efeito Attenborough
Os efeitos mais transformadores do deslumbramento podem referir-se à forma como nos observamos.
Quando ficamos maravilhados com algo realmente incrível e grandioso, "nós nos percebemos como menores e mais insignificantes com relação ao resto do mundo", afirma Shiota. Uma consequência é o maior altruísmo.
"Quando estou menos concentrada em mim mesma, nos meus próprios objetivos e necessidades e nos pensamentos que passam pela minha cabeça, tenho mais capacidade de observar você e [perceber] o que você pode estar vivendo", afirma ela.
Para medir esses efeitos, uma equipe liderada por Paul Piff, da Universidade da Califórnia em Irvine, nos Estados Unidos, pediu a um terço dos participantes que assistisse a um clipe de cinco minutos da série Planet Earth, da BBC, composta de imagens grandiosas e arrebatadoras de paisagens, montanhas, planícies, florestas e cânions. Os demais assistiram a um clipe de cinco minutos de vídeos engraçados com animais ou a um vídeo neutro do tipo "faça você mesmo".
Em seguida, os participantes avaliaram o quanto eles concordavam com quatro afirmações, como "sinto a presença de algo maior que eu" e "sinto-me pequeno e insignificante". Por fim, eles participaram de um experimento conhecido como o "jogo do ditador", no qual recebem um recurso - neste caso, 10 cupons de um sorteio de um vale-compras de US$ 100 - que eles poderiam ou não dividir com um parceiro, se desejassem.
As sensações de deslumbramento produziram mudança significativa da generosidade dos participantes, aumentando o número de cupons compartilhados com os parceiros. As análises estatísticas que se seguiram permitiram aos pesquisadores demonstrar que isso foi causado pelas mudanças da sensação de si próprios. Quanto menores se sentiam os participantes, maior a sua generosidade.
Para reproduzir a descoberta em um ambiente mais natural, um dos pesquisadores levou os estudantes para uma caminhada por um bosque de eucaliptos da Tasmânia - que crescem até mais de 60 metros. Enquanto os estudantes contemplavam o esplendor das árvores, os pesquisadores "acidentalmente" deixaram cair as canetas que estavam carregando e observaram se os participantes se ofereciam para pegá-las.
Eles perceberam com total segurança que os participantes eram mais prestativos durante essa caminhada inspiradora do deslumbramento que os estudantes que haviam passado o tempo contemplando um edifício alto, mas não tão majestoso.
Colocando em perspectiva
Além de tudo isso, os benefícios para a nossa saúde mental são enormes. Eles são causados, como o aumento da generosidade, pela redução do sentido de si próprio, que parece reduzir o pensamento ruminante.
Isso é potencialmente muito importante, pois a ruminação é um fator de risco conhecido para a depressão, a ansiedade e transtornos de estresse pós-traumático. "Você muitas vezes está tão concentrado na situação que não pensa em mais nada", afirma Ethan Kross, cujo livro Chatter: The voice in our head, why it matters and how to harness it ("Falatório: A voz na sua cabeça, por que ela é importante e como dominá-la", em tradução livre) explora os efeitos dessas conversas negativas consigo mesmo.
O deslumbramento nos força a ampliar nossa perspectiva, segundo ele, de forma a interromper o ciclo de pensamento ruminante. "Quando você está na presença de algo vasto e indescritível, você se sente melhor e seu falatório negativo também diminui", afirma ele.
Para comprovar seu ponto de vista, Kross indica um experimento extraordinário realizado por pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. Os participantes eram militares veteranos e jovens de comunidades desfavorecidas, muitos dos quais sofriam estresse sério na vida (alguns até com sintomas persistentes de estresse pós-traumático).
Todos eles haviam se inscrito anteriormente em uma viagem para praticar rafting em águas claras no Rio Verde, em Utah, nos Estados Unidos, patrocinado por uma organização filantrópica. Antes e depois da viagem, eles foram questionados sobre seu bem-estar psicológico geral, incluindo seus sentimentos de estresse e sua capacidade de lidar com os desafios da vida. E, após cada dia de rafting, pediu-se aos participantes que preenchessem um questionário, avaliando suas sensações de deslumbramento, diversão, contentamento, gratidão, alegria e orgulho.
Como se poderia esperar, a viagem, de forma geral, foi muito agradável para a maioria dos participantes. Mas foi a sensação de deslumbramento que indicou as melhorias mais importantes do seu estresse e bem-estar em geral.
Estas foram circunstâncias claramente excepcionais, mas os pesquisadores observaram efeitos muito similares em um segundo estudo que examinou o contato diário dos estudantes com a natureza. Novamente, eles concluíram que as experiências de deslumbramento apresentam impacto muito maior sobre o bem-estar dos estudantes a longo prazo, em comparação com as sensações de contentamento, diversão, gratidão, alegria e orgulho.
Isso é bom ou ruim?
Antes que fiquemos deslumbrados com essa pesquisa, Shiota alerta que os cientistas ainda precisam examinar se essa potente emoção tem algum efeito negativo. Ela suspeita, por exemplo, que o deslumbramento pode explicar o apelo exercido por muitas teorias da conspiração - com suas explicações intricadas e misteriosas do funcionamento do mundo. Mas, de forma geral, os benefícios do deslumbramento precisam ser considerados sempre que sentirmos que nosso pensamento ficou preso em uma rotina improdutiva ou prejudicial.
"A capacidade [que temos] de sair de nós mesmos é uma técnica muito valiosa", afirma Kross. Ele acredita que andar no jardim público do seu bairro e pensar em viagens espaciais traz os sentimentos necessários de assombro, respeito e reverência, mas indica que cada um de nós terá suas preferências pessoais. "Tente identificar quais são os seus próprios gatilhos", sugere ele.
Para Michelle Shiota, as possibilidades são tão infinitas quanto o universo. "As estrelas no céu noturno nos relembram do universo além da nossa experiência. O som do oceano nos relembra suas imensas profundezas; o pôr do sol brilhante nos relembra como é vasta e espessa a atmosfera em volta do nosso planeta", afirma ela. Isso sem mencionar as sublimes experiências oferecidas pela música, cinema ou arte.
"Tudo é questão de experimentar e prestar atenção no extraordinário à nossa volta, em vez daquilo que, para nós, é rotina", conclui ela.
David Robson é escritor de ciências residente em Londres. O seu último livro, O efeito da expectativa: como o seu pensamento pode transformar a sua vida (em tradução livre do inglês) foi publicado no Reino Unido em 6 de janeiro de 2022 e, nos EUA, será publicado em 15 de fevereiro de 2022. Sua conta no Twitter é @d_a_robson.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Worklife.
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