Covid-19: 5 fatores que podem ameaçar o fim da emergência de saúde pública anunciado no Brasil
Chegada do inverno, descoberta de novas variantes, surtos em outros países, desestruturação dos serviços e queda de proteção da vacina são alguns dos ingredientes que precisam ser observados de perto nas próximas semanas.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, declarou no domingo (17/4) que a covid-19 não será mais considerada uma emergência de saúde pública no Brasil.
A decisão, que vai revogar uma série de regulamentações e leis que marcaram os últimos dois anos, gerou controvérsia entre especialistas.
"Me preocupa o fim da emergência nacional num momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda entende que estamos diante de uma pandemia, ou uma emergência de saúde pública internacional", critica a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
"E ainda não está claro o que isso vai significar na prática e qual será o plano se as coisas voltarem a piorar", chama a atenção Leonardo Bastos, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).
O anúncio do Ministério da Saúde acontece num momento em que as médias móveis de casos e mortes por covid-19 estão em queda no país —e o relaxamento das políticas preventivas, como o uso de máscaras e a prevenção de aglomerações, já estava em prática há semanas em diversas cidades e Estados.
Vale destacar que a revogação da Emergência em Saúde Pública de Interesse Nacional (Espin) não significa o fim da pandemia, como explicado pelo próprio ministro Queiroga.
"Continuaremos a conviver com o vírus. O Ministério da Saúde permanece vigilante e preparado para adotar todas as ações necessárias para garantir a saúde dos brasileiros em total respeito à Constituição Federal", afirmou.
Mas e se os casos, as hospitalizações e as mortes por covid-19 voltarem a subir em alguma parte do país? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil listam os cinco fatores que podem ameaçar o fim da emergência de saúde pública anunciada pelo governo —e o que deveria ser feito para combatê-los.
1. Temporada de frio
Todos os anos, a chegada do outono e do inverno costuma vir acompanhada de um aumento nos casos de infecções respiratórias, como gripe e resfriado.
E isso está mais relacionado ao comportamento das pessoas do que aos vírus em si: no frio, costumamos ficar mais tempo em lugares fechados, com pouca circulação de ar, e próximos uns dos outros.
Esse é o cenário perfeito para a transmissão de patógenos como o influenza, o causador da gripe, e do vírus sincicial respiratório, do bocavírus ou do rinovírus, que estão por trás do resfriado.
A flutuação de casos de doenças respiratórias de acordo com a estação do ano, aliás, é um fator determinante nas políticas públicas de saúde.
A campanha de vacinação contra a gripe, por exemplo, sempre começa no início de outono na maioria das regiões brasileiras. O objetivo é garantir, antes de o influenza circular com mais intensidade, uma maior proteção contra os casos graves da doença, especialmente nos grupos vulneráveis.
Em relação à covid-19, ainda não foi possível estabelecer quando ocorrerão os aumentos e as diminuições na taxa de infecção —como estamos no meio de uma pandemia de um vírus absolutamente novo, para o qual não tínhamos imunidade alguma, essas curvas sobem e descem em qualquer estação do ano.
"Não temos uma resposta muito clara se o coronavírus vai ter esse padrão parecido com o que vemos em outras infecções respiratórias", entende Bastos.
"Mas é natural pensar que algo similar, com aumento de casos em épocas de frio, também venha a acontecer com a covid", complementa.
E boa parte do Brasil está entrando justamente agora neste período de queda nas temperaturas. Será que isso influenciará na transmissão do coronavírus? Só o acompanhamento das estatísticas nas próximas semanas poderá responder essa questão.
2. Surtos em outros lugares
Como fenômeno global, a pandemia tem repercussões em todos os continentes —e o que acontece do outro lado do mundo pode respingar aqui de alguma maneira.
Isso foi observado diversas vezes ao longo dos últimos dois anos. É só lembrar que os primeiros casos de covid foram observados na China e logo apareceram na Europa. Na sequência, o coronavírus foi detectado na América do Norte e, depois, no Brasil.
Entre 2020 e 2021, esse fluxo se repetiu algumas vezes: ondas de casos e mortes que começaram em alguma parte da Europa logo se repetiram nos Estados Unidos ou na América Latina (e vice-versa).
A própria variante ômicron, detectada originalmente na África do Sul em novembro do ano passado, se espalhou com uma velocidade sem precedentes e provocou recordes de infecções nos meses seguintes em várias partes do mundo.
Vale notar que, com o avanço da vacinação e o alto número de indivíduos que tiveram covid, a influência da situação internacional no contexto de cada país se torna menos relevante —uma população com alto grau de imunidade tende a sofrer menos com novos surtos do que os moradores de um local que não experimentou grandes ondas recentemente.
Mesmo assim, os especialistas consideram prematuro ignorar completamente uma piora dos números em qualquer parte do mundo, ainda mais num momento de abandono das medidas restritivas e de aumento na circulação de pessoas.
Maciel explica que, dentro de uma pandemia, existem alguns momentos de crise e outros de calmaria.
"Nós temos as ondas e períodos interpandêmicos, marcados pela diminuição de casos, hospitalizações e mortes", diz.
"E ainda é cedo para dizer se o que vivemos agora é justamente esse período interpandêmico, e logo veremos um novo aumento nos números, ou vamos passar realmente para a endemia, com uma estabilização do cenário", continua a epidemiologista.
O caminho para determinar onde estamos atualmente envolve monitorar o que acontece em todo o mundo, especialmente nos países com os quais os brasileiros têm mais contato e um fluxo constante de viagens.
Caso a situação aperte nesses locais, pode ser necessário fazer novas restrições e aprimorar o controle de casos positivos de covid em portos, aeroportos e fronteiras.
3. Desestruturação do sistema
Maciel também teme que o fim da emergência de saúde pública nacional desmonte serviços de vigilância e de atendimento aos pacientes que foram criados nesses últimos dois anos.
"O decreto de Espin permite uma série de compras, licitações e normas para responder à crise sanitária que envolve a remessa de vacinas, a ampliação de leitos hospitalares, a distribuição de insumos...", lista.
"O Governo Federal não pode acabar com o decreto sem fazer um período de transição, para que Estados e municípios planejem as ações dali em diante."
A professora da Ufes ressalta que é hora de manter os serviços de saúde e até reforçar o sistema de vigilância de casos e hospitalizações por covid.
É justamente esse monitoramento contínuo que permite identificar um crescimento nas infecções de forma prematura, antes que o problema se espalhe, e tomar as ações para contê-lo.
"E se passarmos por uma nova mudança de cenário, em que os casos, hospitalizações e mortes por covid voltem a aumentar?", questiona Bastos.
"É preciso deixar claro o que será feito se a situação da covid piorar novamente", completa o pesquisador.
4. Aparecimento de novas variantes
Um dos grandes temores dos especialistas é o surgimento de uma nova versão do coronavírus ainda mais transmissível, agressiva ou com capacidade de "driblar" a imunidade obtida com a vacinação ou com as infecções prévias.
"Esse é um risco que está posto e com o qual já lidamos algumas vezes nesta pandemia", aponta o virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul.
As variantes de preocupação registradas até o momento apareceram em locais onde havia uma alta taxa de transmissão do patógeno. Foi o caso da variante alfa, no Reino Unido, da gama, no Brasil, da delta, na Índia e da ômicron, na África do Sul.
Nada garante que esse fenômeno volte a se repetir nos meses que virão, ainda mais num cenário em que o vírus circula livremente e sem restrições.
A boa notícia é que, pelo observado até agora, as vacinas continuam a oferecer um bom nível de proteção contra as formas mais graves de covid, que causam hospitalização e morte.
"Vemos também que há uma espécie de convergência e similaridade entre as variantes que identificamos até agora: algumas mutações apareceram de forma simultânea e independente em lugares diferentes", analisa Spilki, que também coordena a Rede Corona-ômica do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações.
"A tendência é que, com o passar do tempo, tenhamos cada vez menos mortes por covid. Mas também podemos sofrer surtos de proporções elevadas, especialmente se surgirem variantes mais diversas e que consigam escapar da imunidade", complementa o especialista.
Para evitar que essa possibilidade pessimista vire realidade, o caminho é fazer a vigilância genômica e identificar precocemente as novas variantes que surgirem.
5. Queda da proteção
Para completar, ainda não está 100% claro quanto tempo dura a imunidade após a vacinação ou a infecção pelo coronavírus.
Essa proteção, inclusive, deve variar de acordo com uma série de características. Indivíduos mais jovens, por exemplo, podem estar bem resguardados da infecção (ou de suas repercussões mais graves) após tomarem três doses do imunizante.
Já pessoas mais velhas, ou aquelas que passaram por um transplante ou fazem tratamento contra o câncer, costumam ter um sistema imunológico mais debilitado, que não responde tão bem às ameaças infecciosas.
E isso, por sua vez, pode impactar os números da covid: se a imunidade diminui mesmo ao longo dos meses, é possível que ocorra um novo aumento de casos, hospitalizações e até mortes, principalmente nos grupos que são mais vulneráveis.
Esse fenômeno, aliás, já foi visto em outros momentos da pandemia: quando as primeiras vacinas foram aprovadas, preconizava-se duas doses para todo mundo. Após algum tempo, os cientistas começaram a notar uma queda nos anticorpos e um aumento nas taxas de infecções e internações.
Houve um consenso, então, de que era preciso ofertar uma terceira aplicação do imunizante —primeiro em idosos e imunossuprimidos, depois para todos aqueles com mais de 18 anos.
"Pelos estudos que temos até agora, três doses são suficientes para proteger um adulto saudável de todas as variantes em circulação", informa a imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
"Já para indivíduos com imunidade mais baixa, como idosos, pacientes oncológicos, e transplantados, uma quarta dose já é necessária", complementa.
A especialista, que também representa a Sociedade Brasileira de Imunologia, entende que só saberemos sobre a relevância de novos reforços vacinais a partir de estudos científicos, que avaliarão como a imunidade se comporta daqui em diante.
"É hora de monitorar, testar e acompanhar o que está acontecendo no mundo e também no Brasil."
"Pode ser que, daqui a seis meses, apareçam tantos casos que seja preciso instituir uma quarta dose para todo mundo. Por ora, ainda não há essa necessidade", conclui a imunologista.
Por fim, é preciso notar que, no caso do Brasil, a cobertura da vacinação contra a covid segue desigual em muitas partes do país: enquanto São Paulo, Piauí, Paraíba e Ceará apresentam mais de 80% da população imunizada, Amapá, Roraima, Acre e Maranhão não atingiram uma cobertura de 60%.
Já em relação à terceira dose, São Paulo é o único Estado a ter mais de 50% dos adultos com o reforço contra o coronavírus.
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