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Por que sentimos mais dores à noite?

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Rocío de la Vega de Carranza - The Conversation*

07/11/2022 08h20

Falta de sono e alterações hormonais podem ser algumas das razões pelas quais sentimos dores mais intensas à noite do que durante o dia.

Como diz a canção do musical Os Miseráveis, baseado no romance de Vítor Hugo, "os tigres saem à noite, com suas vozes suaves como o trovão".

Todos nós já fomos miseráveis em alguma noite, quando ficamos nos revirando ao redor da cama, olhando para o teto com uma dor insuportável nas costas (ou de cabeça, ouvido, joelho...). A dor estava ali durante o dia, mas agora não nos deixa descansar, abocanhando-nos como um tigre selvagem.

A questão é: por que sentimos dores com mais intensidade à noite? O que a ciência tem a dizer a respeito?

Antes de tudo, o que é a dor?

Todos nós já sentimos dor em algum momento e muitos certamente alguns estão sentindo alguma dor agora mesmo. Por isso, a dor não é um fenômeno desconhecido para ninguém.

Mas, quando precisarmos definir a dor, o assunto começa a se complicar.

Depois de diversas alterações ao longo dos anos, a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP, na sigla em inglês) convencionou em 2020 defini-la como "uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada ou similar à associada a uma lesão real ou potencial dos tecidos".

Por isso, o consenso atual é que a dor é uma experiência dos sentidos, que possui um componente emocional desagradável e relembra, ou está relacionada ao que se sente no caso de um dano físico qualquer.

Para que ela serve?

Temos a tendência de pensar nessa sensação como algo negativo, já que, por definição, trata-se de uma experiência desagradável. Mas o ser humano é uma máquina complexa e bem engrenada, que raramente tem funções que estão disponíveis sem que saiba por quê.

A finalidade da dor consiste em nos avisar que algo não está bem. É um mecanismo de sobrevivência que ajuda a nos manter a salvo de perigos que podem ameaçar nossa integridade física.

Para fazer uma analogia, trata-se de um sistema de alarme que nosso cérebro possui para dizer que estamos em risco e precisamos nos colocar a salvo. E é desagradável justamente para sentirmos a necessidade de evitá-la.

Mas não é uma resposta a um estímulo, como se pensava no tempo de Descartes (por exemplo, quando toco em algo ardente e a dor me salva de me queimar porque faz com que eu retire a mão). A concepção moderna entende a dor como um produto do nosso cérebro, que é o órgão que nos diz onde, quanto e de que forma sentimos dor.

É claro que os estímulos externos (como o calor que comentamos antes) enviam um sinal para os nervos periféricos conectados ao cérebro. E, em seguida, o cérebro irá processar esse sinal e convertê-lo em outra coisa: a chamada nocicepção.

Mas esta é apenas uma parte da experiência, já que o conceito de dor inclui nossa interpretação cognitiva e emocional da nocicepção.

Definitivamente, a dor nem sempre está relacionada diretamente à quantidade de estímulos dolorosos que recebemos, já que ela pode ser percebida na sua ausência. Um exemplo extremo é o fenômeno do membro fantasma: existem pessoas cujo cérebro produz uma dor muito real em uma parte do corpo que foi amputada.

A teoria da porta de controle

Por que, então, a sensação aumenta à noite, quando estamos a salvo na nossa cama? Como isso ajuda a sobrevivência? A explicação tem relação com os sistemas de processamento do nosso cérebro e com a ciência da percepção.

Perto dos anos 1960, o psicólogo Ronald Melzack e o neurocientista Patrick Wall propuseram sua teoria das comportas da dor. Segundo a teoria, existe na medula espinhal uma comporta que permite ou não a passagem dos estímulos dolorosos para o cérebro.

Em outras palavras, haverá certas coisas que farão com que a comporta se feche e sintamos menos dor e outras farão com que a comporta se abra e sintamos a dor com maior intensidade. Um exemplo é o ato mecânico de friccionar a pele quando recebemos um golpe. A sensação de fricção concorre com a dor e reduz sua intensidade.

No silêncio da noite, as vozes desses tigres soam mais alto, da mesma forma que nos lembramos de alguma situação incômoda que experimentamos durante o dia e quase já tínhamos esquecido.

Sozinhos na escuridão, não há nada que nos distraia e ajude a fechar a comporta: nem imagens, nem sons, nem interações com os demais.

O pior momento: 4 da madrugada

Desde os anos 1960, novas teorias, técnicas e descobertas foram alimentando a ciência da dor.

Um estudo publicado na revista Brain no último mês de setembro também indica os ritmos circadianos como um possível agente importante no fenômeno da intensificação noturna da dor.

A pesquisadora Inès Daguet e seus colaboradores conduziram um estudo de laboratório inovador que descobriu que o momento do dia em que a dor é percebida com mais intensidade (também experimentalmente, neste caso) é às 4 horas da madrugada.

Uma possível explicação é a falta de sono, já que sua influência também foi demonstrada. Mas, no modelo de Daguet, o peso dos ritmos circadianos foi muito maior.

Essas mudanças podem estar relacionadas aos níveis críticos de hormônios que temos durante o dia, como o cortisol, relacionado ao sistema imunológico e às inflamações, e a melatonina.

Apesar de tudo, é preciso não esquecer que se trata de um estudo experimental, em um ambiente de laboratório. Os participantes não se encontram no seu ambiente natural (dormindo na sua cama) e recebem estímulos dolorosos de forma artificial (por meio de uma máquina indutora de calor).

Alertas à ameaça de predadores

Os pesquisadores Hadas Nahman-Averbuch e Christopher D. King publicaram um comentário ao estudo anterior, indicando que, do ponto de vista evolutivo, somos mais vulneráveis aos predadores à noite, quando estamos dormindo. Por isso, faz sentido que uma menor intensidade de estímulos seja suficiente para nos despertar de um perigo em potencial.

Definitivamente, ainda são necessárias novas pesquisas para entender por que sentimos mais dores à noite, mas parece que o nosso cérebro continua tentando nos proteger para que os tigres (neste caso, de verdade) não nos comam enquanto dormimos.

* Rocío de la Vega de Carranza é pesquisadora de psicologia da Universidade de Málaga, na Espanha.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em espanhol.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63456437