Potente e altamente aditivo: há risco de epidemia de fentanil no Brasil?
O tráfico ilegal de fentanil, opioide sintético de uso originalmente hospitalar e responsável por uma grave epidemia de saúde pública nos EUA, chegou ao Brasil neste ano.
Thiago Marques Fidalgo, psiquiatra e professor da Unifesp, explica que o risco de overdose por abuso do narcótico é muito maior comparado às demais drogas em circulação no Brasil hoje.
O limite entre a dose que vai causar o barato esperado e a dose que vai levar à morte é muito estreito. É muito fácil você errar a mão.
Os EUA assistem, desde o início da década passada, a uma onda crescente de mortes por overdose associadas ao uso de opioides sintéticos. Bateu a casa dos 70 mil em 2021 —e o consumo ilegal de fentanil, segundo o CDC, agência do país que compila dados de saúde pública, seria o principal vilão.
Altamente aditiva, a substância —cuja potência supera em até 50 vezes a da heroína e em 100 vezes a da morfina— é também extremamente letal: bastam 2 miligramas para levar alguém à morte.
A produção e o tráfico ilegal, sem controle regulatório, expõem usuários a um jogo de roleta-russa —seja ao consumir o produto sem saber a dosagem do que estão comprando, seja ao fazer uso de outras drogas "batizadas" com o fentanil.
Especialistas americanos e o CDC apontam que grupos criminosos têm misturado o narcótico a outras substâncias —como heroína, metanfetamina e cocaína —para ampliar margens de lucro, tornando-as mais potentes e viciantes, mas também mais letais. A prática abarcaria até mesmo medicamentos de prescrição controlada vendidos em farmácias, como ansiolíticos.
Como o fentanil se diferencia de outras drogas em uso no Brasil?
Criado em 1959, o fentanil tem sido utilizado legalmente há várias décadas como analgésico e sedativo. Sua atuação sobre o organismo é rápida, e seus efeitos cessam em igual velocidade. Mas, diferentemente dos EUA, onde pode ser adquirido em farmácias mediante receituário, no Brasil, ele é usado somente em hospitais e centros cirúrgicos.
Arthur Guerra de Andrade, supervisor-chefe do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, descreve assim a própria experiência que teve com o fentanil num pós-operatório em 1998: "Acordei da cirurgia sem nenhuma dor e nenhuma angústia, ansiedade, preocupação ou chateação. Não estava eufórico; estava absolutamente calmo, tranquilo."
O que torna a droga útil do ponto de vista médico explica também seu alto potencial aditivo para usuários comuns: o pico é imediato, e logo é preciso repetir a dose, em quantidades cada vez maiores, para sentir de novo a mesma sensação. Isso induz um desequilíbrio químico no organismo, e torna a abstinência insuportável.
Opioides como o fentanil agem como depressores do sistema nervoso central, diminuindo a frequência cardíaca, a pressão arterial e o fluxo de oxigênio —efeito oposto ao de estimulantes como a cocaína e o crack.
Qual é o risco de uma epidemia de fentanil atingir o Brasil?
Especialistas da área de saúde e segurança pública ouvidos pela DW dizem considerar improvável que a droga tome no Brasil as proporções que assumiu nos EUA.
O primeiro motivo é de natureza logística, conforme explica Guaracy Mingardi, analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O tráfico de drogas, controlado pelas facções criminosas, segue uma rota consolidada entre Bolívia, Peru e Paraguai, e é focado em três produtos: maconha, cocaína e um derivado, a pasta-base —matéria-prima do crack, consumida pelo estrato mais pobre da população.
Segundo Mingardi, o fentanil está fora da rota do tráfico brasileiro e não é um produto competitivo. "Crack é mais impuro, barato e fácil de fazer. Paga-se R$ 5 a pedrinha. Você não consegue produzir fentanil a esse valor", afirma.
Vender fentanil em larga escala no Brasil, argumenta o cientista político, só se for para um público com poder aquisitivo maior —e com a anuência do crime organizado, algo que ele diz considerar improvável. "Por que mudar para uma droga que vai matar mais gente e ter repressão?", questiona Mingardi.
"Se mata alguém de classe média, classe média alta, dá repercussão, e a polícia cai matando. Vai ter muita pressão. Noia morre todo dia, não necessariamente por crack. Você vê isso no noticiário? Não. Mas se morre por causa disso. Uma menina de 18 anos, que acabou de entrar na universidade, vai dar uma repercussão do cão. Aí você vai ter a polícia e o crime organizado atrás do pessoal."
O fentanil que chega aos EUA é produzido pelo narcotráfico no México, país vizinho, e contrabandeado pela fronteira —um negócio facilitado pelo acordo de livre-comércio entre os dois países. Lá, é comercializado por quadrilhas locais como um entorpecente mais barato, mais potente e mais viável economicamente do que a heroína, que antes costumava ser a droga mais popular no país.
Segundo relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, em 2019 um comprimido de fentanil chegava a ser vendido nas ruas por US$ 2.
O segundo motivo tem a ver com diferenças elementares nos sistemas de saúde pública dos dois países: enquanto nos EUA a prescrição de opioides como analgésico é relativamente comum, o Brasil tem uma regulamentação mais rígida e uma cultura médica distinta, mais cautelosa em relação a esse tipo de substância.
"A tolerância ao efeito dos opioides acontece muito rápido no cérebro. Em relativamente pouco tempo você poderia ter a migração de um opioide de prescrição para um opioide ilícito, mais potente", justifica Fidalgo, da Unesp. "Nos EUA, a prescrição acontece por um problema simples, uma dor de cabeça."
Ele alerta para a possibilidade de os opioides se tornarem um problema de saúde pública também no Brasil, e aponta para a falta de dados robustos sobre o consumo dessas substâncias entre a população. "Pelo que a gente observa no dia a dia, os opioides estão longe de serem um problema. Mas prática clínica não é considerada evidência científica", ressalta.
Segundo o psiquiatra, embora o Brasil tenha um mercado clandestino para medicamentos de prescrição restrita, como opioides, o fentanil não faz parte desse universo, já que está restrito a hospitais. "Me parece mais preocupante que possa ser usado para 'batizar' outras substâncias. É um risco, e talvez seja a principal porta de entrada", analisa.
Segundo Gabriel Andreuccetti, coordenador do Centro de Excelência para a Redução da Oferta de Drogas Ilícitas, projeto das Nações Unidas em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, isso já tem acontecido e o Brasil registrou, no passado, episódios de intoxicações com a substância.
Ele frisa, porém, que esse risco ainda é muito incipiente. "Estamos num estágio bem inicial. Mas isso pode mudar em poucos anos. Os EUA são um exemplo clássico disso", frisa. "O fentanil não é uma droga prevalente no Brasil, mas é preciso ter cuidado e manter-se vigilante."
Para os especialistas ouvidos pela DW, a chegada de uma droga nova sempre desperta curiosidade, e por isso não será surpresa se o Brasil registrar, no futuro, casos de overdose por fentanil. "Essa apreensão vai chamar atenção e mais gente vai querer usar. É sempre assim. Foi assim com o crack", afirma Mingardi.
Andrade, da USP, concorda: "Se teve apreensão é porque tem gente querendo usar. Mas pode ser que acabe aí. Vai depender muito da procura das pessoas."
Ao contrário do que acontece nos EUA, contudo, a substância não deve ser barata. "Os opioides tendem a chegar no Brasil custando mais caro. Então, pelo menos num primeiro momento, não seria algo que aconteceria de forma ampla", avalia Fidalgo. "O uso do fentanil deve se concentrar em outras classes sociais."
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